quinta-feira, 16 de abril de 2020

Entre Sofia e Istambul

Pelo preço de dois jantares, com sorte, persistência, paciência e pontaria, voámos entre Portugal e a Bulgária. Chegámos a Sofia ao final da tarde depois de um dia de escalas lowcost pelos aeroportos da Europa envelhecida, snobe e paranóica com os próprios medos, como o são normalmente as velhas ricas e solitárias. Sofia lá estava, cidade com nome de mulher e deusa, suja e vagamente decadente definitivamente bela e surpreendentemente culta. A Europa do Leste no seu melhor e pior. Onde os homens de negócios se confundem com mafiosos e os mafiosos se confundem com professores universitários. Historiadores chauvinistas, religiosos ortodoxos, nacionalistas saudosistas do socialismo e mulheres jovens prostituídas. Muitas. Em cada esquina uma sex shop nas outras três esquinas casinos. O melhor e o pior da pesada herança do universo socialista persiste vestindo Sofia num fato da marca branca que assenta desconfortável a uma Bulgária saudosa do nazismo. Património edificado monumental, parques e espaços verdes espalhados pela cidade convivem com avenidas esburacadas, caixotes do lixo devassados no chão e estacionamento selvagem. Muita gente jovem na rua. Teatro, ballet. Nas livrarias tudo em búlgaro. Nos cinemas a imbecilidade gringa. O pequeno comércio florescente, em cada vão de escada há uma mercearia. Alguns mendigos, menos que em Lisboa. Sofia é uma cidade suja com bancas de livros em segunda mão por toda a parte. Comida barata e lindas mulheres brancas com lindas pernas brancas dentro das mini saias curtas, olhares e sorrisos gelados e brancos nos rostos maquilhados. Mal chegámos, desistimos do hostel que tínhamos reservado. Pareceu-nos bem na net, mas no local revelou-se um buraco sem aquecimento e sem casa de banho no quarto. Claro que dissemos ao gajo que não queríamos. Procurámos outro e encontrámos uma pensão barata que transformou o dormitório em quarto duplo. Deixámos lá as mochilas enquanto os donos foram arranjar uma cama de casal. Saímos para a rua prestes a anoitecer. Demos um passeio de quilómetros atravessando a cidade que fervilhava no trânsito. Fomos à estação de comboio comprar os bilhetes para Istambul. Parques e jardins omnipresentes, mas descuidados. Grande a profusão de obras de arte a três dimensões. Escultura e arquitetura, desde a baixa idade média até aos dias de hoje, convivem no permanente verde de Sofia. Particular incidência para o realismo soviético. Algumas obras modernas e neorrealistas também aparecem. Mais ou menos escondido entre as traseiras de uma igreja e no final de uma feira de pinturas e antiguidades onde não resistimos a gastar alguns levs, encontrámos um restaurante simples. Comemos principescamente e fomos iniciados no sagrado e oculto mistério dos tintos da Bulgária. E por aqui nos ficámos, jurámos nada revelar e as memórias são nebulosas. Voltamos a pé para o hotel caminhando na noite gelada e dura de Sofia. No dia seguinte, levámos as mochilas para a estação e deambulámos pelos jardins e catedrais. Fomos ver o monumental parque escultórico de homenagem à vitoria contra o nazismo de 1945… que os nazis de hoje querem literalmente derrubar. Comemos e andámos pela cidade. Como não há bar no comboio regional que segue a linha do Expresso do Oriente, preparámos um piquenique para a viagem não nos apanhar com fome. Levámos o que fomos comprando nas mercearias da zona da estação central: uma espécie de bola de carne com salsicha, folhado de queijo feta, pão de centeio, mortadela, chá preto a ferver para dentro do termo, dois litros de água, meio litro de vodka e uma garrafa de conhaque para as eventualidades. O comboio chegou pontual com o previsto atraso de meia hora. Saímos pelas nove da noite. Despedimo-nos de Sofia com um beijo nos lábios e seguimos para oriente. Cigarros fumados furtivamente à janela com a conivência do revisor num comboio para "não fumadores". Apesar de tecnicamente, este comboio já não ser o Expresso do Oriente, de não ter nada de expresso, a linha é a mesma e a magia permanece. Atravessa as Balcãs de Zagreb a Istambul. De Sofia a Istambul, são os quinhentos quilómetros do percurso da separação dos continentes. Por fora degradado, por dentro funcional e confortável, um comboio grande e lento. O aquecimento no máximo, que nos impôs viajar de cuecas enquanto a neve caía na noite gelada. Saímos de Sofia ao final da tarde cinzenta e fria. Foram dezasseis horas no cubículo da carruagem cama, depois Istambul. Luminosa, temperada e a cheirar a mar. Pelo meio, uma paragem no meio do nada para pagar um vago visto, comprar cigarros ao preço da chuva e carimbar o passaporte. Isto entre as três e as quatro da manhã com militares armados a bater no cubículo. Os pés descalços dentro das botas grossas, as calças vestidas à pressa e um casaco grande de neve por cima do tronco nu, um gorro na cabeça, o passaporte na mão e a carteira presa nas calças entre o umbigo, o cinto e a braguilha. Chegámos duas horas depois do sol nascer. Istambul lá estava, esparramando as carnes fartas sobre as águas. A maior cidade da Europa, uma ilha de culturas misturadas, num mundo cada vez mais fechado sobre si próprio. Três margens e nenhum rio. Apenas mares. Quatro mares, dois mares a ligarem outros dois mares. Marmara e Bósforo a ligarem o Mediterrâneo e o Negro. Mais um Corno de Ouro. Três impérios sobrepostos. Romano do Oriente, Bizantino e Otomano. Nacionalismo exacerbado. Internacionalismo censurado. Curdos e iraquianos esperam a sua vez. O fundamentalismo alastra nos imensos subúrbios onde os pobres vêem passar em Mercedes de vidros fumados, um mundo que nunca será seu. O fantasma do Euro vai fazendo vítimas enquanto do Bósforo, vinte e quatro horas por dia mais de mil pescadores pescam peixinhos. Saídos da estação, despimos casacões e fomos ver o mar junto à ponte de Galata. Do outro lado, o Bairro de Galatazarai. Fica na margem Norte do Corno de Ouro. Na parte europeia de Istambul. Casas antigas, ruas estreitas e praças com sol. Procurámos um local para deixar as malas e à noite dormir. Ficámos por Sultanahmed com as suas quinhentas mil pensões baratas, hostéis e hotéis à sombra da Haya Sofia. Ficámos num primeiro andar de tetos baixos, num quarto minúsculo, mas limpo, barato e com uma casinha de banho de brincar. Na rua os, cafés onde se está a beber chá, a fumar chicha, a jogar gamão e a discutir política em todas as línguas desde há três mil anos até este preciso momento. É assim Istambul, desde o mais remoto início dos tempos e será assim até à eternidade. Mesmo debaixo da Ponte de Galata, que junta as duas margens do Bósforo, ali mesmo, junto às águas vende-se peixe. Peixinho bom. Fresco. Peixe humilde para gente humilde: carapaus, cavalas, fanecas e tainhas. São bancas de venda ambulante e cada uma está equipada com um fogareiro que permite assar logo ali o peixe que se comprou. Ao lado, outros vendedores em carrinhos vendem sandes de peixe assado que escolhemos na banca do vizinho. Há também quem vendas as bebidas. Iogurte, café e chá. Estão por ali umas mesas encostadas onde se pode abancar e comer em cima das toalhas de plástico limpas diligentemente com um pano húmido e gotas de limão. Refeições baratas, para gente do bairro, empregados de comércio, trabalhadores das obras, estudantes e ocasionais viajantes. Comemos e seguimos viagem. A incontornável Haya Sofia. Mesquita da Sagrada Sabedoria onde os gatos são os donos da cidade. Ficámos por ali até ao sol se por. Comemos, bebemos chá e fumámos nas esplanadas. No dia seguinte o mercado. O Grand Bazar, que não serve só para comprar e vender, mas também para falar com os amigos, dizer mal da vida dos outros, namorar e ver quem passa. No mercado das especiarias, abastecemos a despensa de todos os temperos. Comemos por ali, espetadas de galinha e de carneiro, com chá de maçã e frutos secos. A tarde caiu rápida trazendo um vento frio que convidava à partida. Despedimo-nos do Bósforo e voámos de regresso para Lisboa numa companhia regular que faz preços de saldos. Istambul continuará a ser uma das minhas cidades, Sofia é uma cidade que é de todos.