quinta-feira, 16 de abril de 2020

De onde nunca saí

Há muitas formas de chegar. Há muitas formas de entrar e sair de uma cidade, de um país, de um lugar. Podemos chegar de avião, onde a chegada é o momento definido que acontece no exacto instante em que se respira o ar da rua vindo da porta que se abre para as escadas assentes no asfalto da pista. Depois o guichet onde carimbam os passaportes e nos inspeccionam as intenções escritas é a formalização da chegada. Chegar de carro, em que vamos chegando ao longo de uma ou duas horas, onde à distância de uns cinquenta ou cem quilómetros, a cidade que é o nosso destino, vem ter connosco à estrada em anúncios, nomes de marcas e ruas e placas com indicações. Podemos chegar de comboio, com a mochila arrumada na prateleira de ferro por cima do banco e a marcha a abrandar entre gemidos metálicos e pessoas que se levantam a nossa volta. Temos tempo para organizar as nossas coisas, limpar o lixo e arrumar os restos do farnel, trocar números e e-mails com os companheiros de viagem enquanto vamos cruzando os arredores, passagens de nível, túneis, luzes verdes, vermelhas e amarelas, mais linhas e carris e, por fim, num grande peido eléctrico ou de diesel e todo aquele ferro fica imobilizado na estação. E dizemos, “Chegámos!”, ignorando que já estávamos a chegar há umas duas ou três horas. Podemos chegar de autocarro. Mais ou menos desconfortáveis, a ver a estrada lá de cima, entalados com vizinho obeso no banco do lado e com o olhar a ficar estrábico entre a paisagem lá fora e o decote da passageira adormecida dois bancos à frente. Podemos chegar a uma cidade à boleia, sempre com aquela ponta de medo esquizofrénico, da incerteza da chegada ao destino: “Será que o gajo que me deu boleia me quer matar...?” sabendo que o gajo que nos deu boleia está a pensar precisamente isso de nós. Independentemente da forma, eu gosto de chegar. Gosto de chegar, de preferência pela manhã. Chegar a uma cidade de manhã depois de uma noite mal dormida nos bancos de um autocarro, de um comboio ou de um avião... é para mim, que serei esquisito, o supra-sumo da felicidade dinâmica. De chegar gosto sempre. De vir embora, nem sempre gosto. Há cidades onde podemos chegar inteiros e sair inteiros. Acontece com frequência em cidades frias de gente cinzenta vestida para o frio. Nós vamos, chegamos, fazemos o que temos a fazer e vimos embora. Adeus-e-até-ao-meu-regresso e aqui vou eu que a minha vida não é isto. Mas há lugares que são diferentes. Há lugares, cidades e terras especiais. Cidades em que chegamos inteiros, mas voltamos aos bocados. Voltamos a colar bocados e a sentir a falta das peças que ficaram lá. Lugares onde ficamos. Cidades em que chegamos inteiros e para partir, partimo-nos, deixando para trás bocados de nós mesmos. Há lugares, em que chegamos desfeitos e desarticulados e são eles que nos curam. Há também os sítios a que vamos chegando, com meses ou anos de antecedência. Vamos chegando com e-mails, telefonemas, recados e encomendas... e depois finalmente, cruza-se o espaço e estamos lá fisicamente, comemos, bebemos, pisamos o chão, dormimos, amamos e lutamos como todos os outros que são a cidade que também é nossa.