quinta-feira, 16 de abril de 2020

De onde nunca saí

Há muitas formas de chegar. Há muitas formas de entrar e sair de uma cidade, de um país, de um lugar. Podemos chegar de avião, onde a chegada é o momento definido que acontece no exacto instante em que se respira o ar da rua vindo da porta que se abre para as escadas assentes no asfalto da pista. Depois o guichet onde carimbam os passaportes e nos inspeccionam as intenções escritas é a formalização da chegada. Chegar de carro, em que vamos chegando ao longo de uma ou duas horas, onde à distância de uns cinquenta ou cem quilómetros, a cidade que é o nosso destino, vem ter connosco à estrada em anúncios, nomes de marcas e ruas e placas com indicações. Podemos chegar de comboio, com a mochila arrumada na prateleira de ferro por cima do banco e a marcha a abrandar entre gemidos metálicos e pessoas que se levantam a nossa volta. Temos tempo para organizar as nossas coisas, limpar o lixo e arrumar os restos do farnel, trocar números e e-mails com os companheiros de viagem enquanto vamos cruzando os arredores, passagens de nível, túneis, luzes verdes, vermelhas e amarelas, mais linhas e carris e, por fim, num grande peido eléctrico ou de diesel e todo aquele ferro fica imobilizado na estação. E dizemos, “Chegámos!”, ignorando que já estávamos a chegar há umas duas ou três horas. Podemos chegar de autocarro. Mais ou menos desconfortáveis, a ver a estrada lá de cima, entalados com vizinho obeso no banco do lado e com o olhar a ficar estrábico entre a paisagem lá fora e o decote da passageira adormecida dois bancos à frente. Podemos chegar a uma cidade à boleia, sempre com aquela ponta de medo esquizofrénico, da incerteza da chegada ao destino: “Será que o gajo que me deu boleia me quer matar...?” sabendo que o gajo que nos deu boleia está a pensar precisamente isso de nós. Independentemente da forma, eu gosto de chegar. Gosto de chegar, de preferência pela manhã. Chegar a uma cidade de manhã depois de uma noite mal dormida nos bancos de um autocarro, de um comboio ou de um avião... é para mim, que serei esquisito, o supra-sumo da felicidade dinâmica. De chegar gosto sempre. De vir embora, nem sempre gosto. Há cidades onde podemos chegar inteiros e sair inteiros. Acontece com frequência em cidades frias de gente cinzenta vestida para o frio. Nós vamos, chegamos, fazemos o que temos a fazer e vimos embora. Adeus-e-até-ao-meu-regresso e aqui vou eu que a minha vida não é isto. Mas há lugares que são diferentes. Há lugares, cidades e terras especiais. Cidades em que chegamos inteiros, mas voltamos aos bocados. Voltamos a colar bocados e a sentir a falta das peças que ficaram lá. Lugares onde ficamos. Cidades em que chegamos inteiros e para partir, partimo-nos, deixando para trás bocados de nós mesmos. Há lugares, em que chegamos desfeitos e desarticulados e são eles que nos curam. Há também os sítios a que vamos chegando, com meses ou anos de antecedência. Vamos chegando com e-mails, telefonemas, recados e encomendas... e depois finalmente, cruza-se o espaço e estamos lá fisicamente, comemos, bebemos, pisamos o chão, dormimos, amamos e lutamos como todos os outros que são a cidade que também é nossa.

Uma forja no Nepal

O meu avô materno seguiu a segunda guerra mundial em direto e viveu-a como um jogo de futebol entre os bons e os maus. Foi ao meu avô quem ouvi pela primeira vez falar no Montecassino. Contou-me que foi a Stalingrado italiana. Os alemães tinham a linha defensiva de Roma instalada sobre montanhas. No final de 1942, as tropas aliadas vinham a subir a bota italiana, desde o sul empurrando os nazis para norte e deixando os fascistas do Mossulini entregues à justiça do povo. Mas chegados a Cassino os aliados tiveram de parar. O inverno de 42/43 foi dos mais duros que a Europa conheceu e registou. Os alemães estavam bem acantonados numa abadia mediaval no cimo de um monte perto de Cassino e controlavam a única passagem disponível para norte. Os aliados tentaram forçar. Polacos, franceses do De Gaulle, os fuzileiros americanos e os escoceses, todos eles, à vez e juntos, tentaram. Todos eles levaram porrada dos nazis – assim me contou o meu avô. Os americanos lançaram um bombardeamento daqueles de arrasar tudo... Os alemães meteram-se nas caves da abadia a mamar lambrusco e a comer presunto e, quando o bombardeamento acabou, vieram para cima e fortificaram os escombros. Eram paraquedistas nazis e não deixavam chegar ninguém lá acima. O janeiro de 43 estava a acabar e o fevereiro ia avançado sem que os aliados chegassem a Roma. Do leste, no inicio daquele fevereiro gelado, chegavam notícias que os soviéticos já tinham corrido com os nazis em Volgrado e que a cidade já se chamava Stalingrado. E os aliados a levaram dos alemães ali no Montecassino a menos de 150 quilómetros de Roma. Foi nesse desespero que os ingleses, pressionados pelos americanos, mandaram a companhia dos indianos. Na realidade não foram os indianos, foram os Gurkas. Carne para canhão, literalmente. Mas o milagre aconteceu, aqueles soldados franzinos e mal alimentados com os restos dos restos, pois aos indianos chegavam às sobras daqulilo que os escocesses não queriam comer e os escoceses só comiam o que ingleses deixavam na borda do prato... Foram aqueles soldados famintos e mal agasalhados que subiram o Montecassino armados de facas e tomaram a abadia aos paraquedistas alemães. Depois dos Gurkas abrirem os portões do Montecassino, os aliados puderam passar e daí tomar Roma foi canja. Enforcar o Mussolini no talho foi a sobremesa. Assim me contou o meu avô e por isso sei que é verdade. Eu tinha uns oito ou nove anos e fiquei imediatamente fã dos Gurkas. Mais tarde aprendi que os Gurkas não eram indianos, mas sim nepaleses. E que a arma que usavam, não era uma simples faca, mas sim um kukri. Aconteceu-me que uns vinte anos depois do meu avô me ter contado sobre a batalha do Montecassino, tive oportunidade de ir ao Nepal. Estávamos na mudança do milénio e o Nepal era um país entalado entre a pobreza absoluta e a guerrilha na montanha e uma monarquia quase feudal nas cidades. O teto do mundo, assim anunciava o turismo. Uma terra pobre e linda com um povo de gente resistente, simpática e trabalhadora. Andei por Katmandu uns dias, sempre com a ideia de arranjar uma daquelas facas iguais aquelas cortaram aos bocados os nazis no Montecassino. Falei com pessoas. Armeiros, militares velhos e malta das arte-marciais. Todos me diziam que já não se faziam kukris. Então, um ex-militar e antigo jogador de futebol em Espanha, disse-me que, se queria um kukri bem feito tinha de ir ao centro do país, a uma aldeia perto de Mirkot chamada Sanabesi. Disse-me que aí ainda se faziam boas facas. Pareceu-me uma ideia razoável e um bom pretexto para seguir viagem. Numa manhã fria e cinzenta de nevoeiro e poluição saí do vale de Katmandu num autocarro regional e em cinco horas fiz os cento e trinta quilómetros que me distanciavam de Mirkot. Mirkot era uma vila perdida na montanha com uma rua principal de duzentos metros em terra batida, dois templos indus, duas ou três mercearias, uma escola e meia dúzia de casas. Cheguei com fome de almoçar. Mas ainda com mais vontade de ir ver as facas. Procurei transporte para Sanabesi, o único taxista do lugar já tinha saído. Eram uns doze quilómetros por estrada e sete pelo atalho subindo e descendo a montanha. Considerei, mas o peso da mochila e o bom-senso prevaleceram. Não havia propriamente um sítio para comer.... no lugar onde parava a camioneta serviam chá com leite, uma espécie de sopa de massa, queijo de búfala e aqueles pães redondos, fininhos e grandes. Comi o que havia. A ideia era ir a Sanabesi, comprar a faca e voltar no próprio dia. O autocarro que me trouxe voltou pelo mesmo caminho e só então percebi que não voltaria a Katmandu no próprio dia, porque o único transporte que havia era aquele que se tinha afastado entre fumo e pó. O homem do táxi chegou uma hora depois. Combinámos o preço e fomos. A paisagem de tirar o fôlego com os Himalaias a mostrarem a ínfima dimensão humana que temos. A estrada foi herança dos ingleses. Não era mantida há mais de cinquenta anos e todos os invernos as avalanches de neve, lama e pedras faziam estragos. O carro indiano do taxista seguia a alta velocidade entre calhaus e precipícios. Meia hora depois chegámos inteiros à aldeia de Sanabesi. Três casas, cinco cães, oito galinhas e umas quinze cabras. As pessoas ao ouvirem os cães a ladrar e o carro a chegar saíram para virem ver. Logo à entrada da aldeia estava a oficina do ferreiro de que me falaram em Katmandu. O homem, velhinho e seco veio receber-me descalço e em tronco nu debaixo de um avental de couro. No canto, debaixo de uma chaminé, a forja. Cheirava a fumo, a metal, a madeira e a couro. Na rua não estava frio porque havia sol. O ferreiro não falava inglês. Por sinais expliquei-lhe ao que vinha. Apontei para as várias lâminas de kukris em processo de fabricação. Disse que queria um kukri para mim. Ele falou e eu não percebi. Mandou-me esperar e uma velhinha trouxe chá quente com leite e açucar onde boiava uma colher de manteiga que derreteu. Decidi mandar o táxi de volta. Havia um telefone em Sanabesi pelo qual combinei ligar-lhe quando precisasse voltar. Fiquei sentado nos bancos baixos da oficina do ferreiro enquanto o táxi se afastava ruidosamente. Só eu e o velhinho. Bebemos o chá em silêncio olhando um para o outro. Sem conversa limitámo-nos à comunicação pelo sorriso. Meia hora depois chegou a neta, teria uns doze anos e falava inglês. A menina traduziu: - O meu avô diz que se quer um kukri tem de lhe tirar as medidas ao braço e pesá-lo, para poder fazer a arma para si. Perguntei quanto custava. Custava uns cinco contos... uma fortuna para a época e para o sítio... com cinco contos em rúpias nepalesas eu podia ficar uma noite alojado no melhor hotel do Nepal. Uma refeição num bom restaurante em Katmandu custava uns duzentos escudos... - Quanto tempo demora a fazer o kukri? O velho falou e a neta traduziu. Normalmente demora uma semana, mas se tiver pressa o meu avô consegue fazer em cinco dias... Tentei regatear o preço. Não baixou o valor da faca, mas incluiu o alojamento e as refeições enquanto lá estivesse. Quis pagar-lhe metade do valor acordado. Disse que não era preciso. Que levasse a mochila para cima e depois que descesse para começarmos a trabalhar na faca. Só aí percebi que era para ficar por ali, naquele fim do mundo nos próximos dias. Iludido pelas distâncias nos mapas, achava que podia sair de Katmandu, ir a Sanabesi comprar um kukri e voltar no próprio dia. O quarto que me deram era uma divisão apertada no sótão por cima da oficina. Tinha uma janela pequenina que dava para a montanha imensa em frente, uma esteira no chão com um colchão fininho de palha, um prego na parede e uma tomada elétrica. Havia uma casa de banho no pátio com uma latrina daquelas de fazer de cócaras e do lado de fora uma torneira. Se quisesse tomar banho, bastava acender uma fogueira no quintal debaixo de um alguidar grande de cobre, encher o alguidar de água, deixar aquecer a água até à temperatura que eu quisesse e quando a água estivesse quente com uma pá de ferro tirar as brasas debaixo do alguidar e usar uma caneca para ir despejando a água por cima de mim. Tudo muito simples mas impecavelmente limpo. Quando desci para a oficina, o velho mediu-me os braços e pesou-me (foi há mais de vinte quilos atrás). Depois com giz no chão desenhou a lâmina e o cabo do kukri do tamanho exato que viria a ter. O velho trabalhava e falava, eu via tudo sem perceber uma palavra. A neta já não estava presente. Por gestos pediu-me para ir com ele. Fomos para uma arrecadação no pátio por trás da oficina. Empilhados do chão ao teto centanas de bocados de metal mais ou menos ferrugentos. De uma prateleira de tubos de andaime, aí a uns dois metros do chão, pediu-me para tirar uma peça. Tinha uns três palmos de comprimento, menos de um palmo de largura e pesava comó caraças. O velho falava. Eu sem entender. Voltei carregando a placa de metal até à oficina onde tinha a forja. No chão preto com o giz branco desenhou um círculo com símbolo da paz invertido. Continuei sem perceber. O velho repetia a mesma palavra medês medês medês! Esforçado e paciente com a minha ignorância, o ferreiro desenhou uma camioneta de carga. Com grande detalhe desenhou as rodas e por trás das rodas os amortecedores. Por gestos explicou que a placa era de uma lâmina de amortecedor de camioneta. E repetia medês mêdes. Eu, burro, sem perceber. Até que o velhinho fez o símbolo da paz invertido sobre o capô da camioneta que tinha desenhado. Fez-se luz: Mercedes!!! Era uma camioneta mercedes. Aquele bocado de metal era de uma lâmina de um amortecedor de uma camioneta mercedes!!! Segundo o velho, aquele aço dos amortecedores da mercedes é dos melhores aços para fazer lâminas de facas. Seja mercedes, pois. Fabrico alemão!!! O sol pôs-se cedo por trás da montanha. Às seis da tarde jantei na cozinha uma sopa de lentilhas, carne de cabra e pão. Ás sete saí para espanto dos donos da casa para fumar e dar uma volta. Nem cinco minutos depois estava de volta. O frio e o vazio absoluto empurraram-me para dentro. As três luzes amarelas da aldeia acabavam a escassos metros e do lado de lá do círculo de luz desenhado no chão à volta do candeeiro o negro infinito da noite. Quando voltei, estava a neta do meu anfitrião mais o resto da família à minha espera. Não devia sair à noite. É muito perigoso. Andam à solta o leopardo e os espíritos de ontem. Por favor fica em casa. Se quiser beber o avô não se importa. Não queria beber. Na realidade, não tinha o que beber. Por isso fiz a vontade a toda a gente: fui-me deitar e não voltei a sair à noite. Às oito e meia já eu dormia. Fiz bem em dormir cedo porque no outro dia, ainda não tinha nascido o sol, já o velho estava à porta do meu quarto a gesticular para eu descer. Percebi depois que era para eu acender o lume. Desci. Na forja já estava preparado um monte de pauzinhos secos e papel de jornal por baixo. O ferreiro deu-me uma caixa de fósforos. Fiz-lhe a vontade. O velho gritou satisfeito, bateu palmas e abraçou-me como se eu tivesse vencido alguma prova desportiva. Depois levou-me para a cozinha onde um pequeno-almoço de bananas, pão, chá com leite e manteiga estava à nossa espera. – Um guerreiro deve acender o lume que forja a sua arma! Traduziu a miúda antes de ir para a escola. Mal acabámos o pequeno-almoço voltou para a forja, quando quis entrar com ele, não deixou. Não podia passar. Passou o resto da manhã na forja. Aí pelas nove e meia comecei a ouvi-lo martelar. Continuou a impedir-me a entrada. Saí para caminhar. Afastei-me da aldeia uns três quilómetros por caminhos de cabras a subir os Himalaias. Depois fartei-me de subir e do vazio de gente e voltei para trás. À hora de almoço estava de regresso à casa do ferreiro. Voltou a proibir-me a entrada na oficina. Quando a menina chegou da escola explicou que o dono da faca não deve estar no sítio onde o metal é batido para que não amoleça o coração da lâmina. Comi uma sopa de massa com legumes e carne de galinha. Estava boa. À tarde voltei a sair para andar pelos matos à volta de Sanabesi. Cruzei-me com pastores e com búfalos. Não vi nenhum leopardo. Voltei antes do sol se pôr para comer. Galinha, arroz e umas folhas parecidas com espinafres cozidos. Às sete e meia estava na cama. Foram assim os dois dias seguintes. Na manhã do quarto dia o velho chamou-me e mostrou-me a lâmina do kukri mais as duas pequenas facas que a acompanhavam. Faltava fazer os cabos e a baínha. Não me deixou tocar na faca. Não lhe podia mexer enquanto não tivesse pronta. A neta explicou que, se eu quisesse podia ficar na oficina enquanto o avô fazia os cabos e a baínha. Mas não podia tocar na faca. Nessa dia vi o artesão trabalhar a madeia para os cabos e para a baínha. No dia seguinte, pela manhã ficou tudo pronto quando o velho cobriu e cozeu o couro à volta da baínha. Num ato cerimonioso mostrou-me e deu-me a faca para a mão. A miúda estava presente e foi traduzindo a ladaínha do avô. Que eu fizesse bom uso dela. Que a sorte me acopanhasse e que eu pudesse sempre usar o kukri como ferramenta de paz e que nunca fosse preciso ser usado como arma. Que os caminhos se abrissem para eu passar e se fechassem para os meus perseguidores. Que o longe se fizesse perto e que os meus passos encontrassem sempre o caminho de volta a casa. Depois de pagar a faca, por magia apareceu o taxista que o velho deve ter chamado. Quis pôr o kukri dentro da mochila. O velho não quis. Disse que a devia usar à cintura. Obedeci-lhe. Despediu-se de mim com um abraço e disse-me que voltasse sempre que quisesse afiar a faca. Foi de kukri à cintura na viagem de táxi de Sanabesi até Mirkot e depois de autocarro de Mirkot a Katmandu. Ao chegar a Katmandu, tirei a faca do cinto e pus dentro da mochila e não voltei a usá-la na rua. Voou comigo no avião, na bagagem de mão, tudo isto aconteceu antes do onze de setembro e eu nos aeroportos por onde passei declarei-a como peça de coleção. Chegámos a Lisboa intactos. A lamina continua afiada a lembrar-me da vitoria sobre os nazis em Montecasino. A bainha cheira ainda à oficina do ferreiro de Sanabesi de onde nunca saí.

Noites do Oriente

Calhou-nos atravessar Cuba durante a noite. Ao contrário do caminho que o sol faz. Fomos de poente para nascente. Do ocidente para o oriente. Direção Santiago. Saímos ao cair do dia de uma Havana quente e húmida. Choveu no caminho para a estação de camionetas e, na tarde que tinha sido quente, aquela chuva soube-nos bem. Molhou-nos mas soube-nos. Comemos uma sandes no bar da estação e sentámo-nos na camioneta que arrancou à hora marcada. Seriam oito da noite. Demorámos a sair do centro da cidade. A rádio sintonizada numa estação de notícias apitava a cada três minutos e ia repetindo os boletins noticiosos. O ar condicionado no máximo do frio. As luzes dos subúrbios foram escasseando à medida que avançámos na estrada. Tentámos dormir, mas o gelo do ar condicionado gelado e a nossa roupa, leve, escassa e húmida, davam-nos a sensação de estarmos no ártico. Os casacos dentro das mochilas no porão. Cá em cima apenas um saco de praia com cigarros, água e uma toalhita que nem sequer era turca...Tapámo-nos com o pano da praia e encostámo-nos um ao outro. Não era confortável mas foi romântico. Romântico e gelado. Na primeira paragem, umas três horas depois de arrancarmos, já sabíamos de cor as notícias, saímos para a noite húmida e quente da beira da estrada. Os cavalheiros deviam atravessar a estrada para irem à casa de banho que era a mata do lado de lá da camioneta. Mesmo que não precisassem de ir... todos tivemos de atravessar a estrada, para darmos privacidade às senhoras que ficaram com a mata junto ao autocarro como casa de banho. Fumámos na estrada vazia sentados no alcatrão morno. Depois voltámos a entrar no frigorífico que era o autocarro e seguimos gelados mais umas horas. O rádio insistia nas notícias. Seriam umas quatro da manhã, parámos em Camaguey. Parámos na estação das camionetas. Havia bar aberto, pessoas a descer e pessoas a entrar. Voltámos a comer sandes e a beber chá quente e confesso que bebi um trago de rum para neutralizar o frio de dentro do autocarro. Pontuais, quinze minutos depois de chegarmos, seguimos viagem. Chegámos a Santiago eram seis e meia da manhã. A cidade a despertar. Demasiado cedo para irmos bater à porta da amiga do amigo que nos ia alojar... Todo o comércio ainda fechado. Felizmente já não tínhamos frio. Na rua o calor e a humidade tropical abraçavam-nos com carinho. Fomos caminhando para o sítio que eu recordava melhor e que me pareceu confortável para esperar: um jardinzinho em frente do quartel-museu- escola Moncada. Era perto dali. A minha companheira precisava de tomar café. Quem me conhece sabe que não bebo café... por isso tenho dificuldade em entender aquelas urgências que dão às vezes às pessoas que bebem café... as urgências do “preciso de um café”. Pois foi uma urgência dessas que deu à minha parceira de viagem. Tinha sido uma noite longa, fria e desconfortável... agora queria beber café. Percebi que era preciso e urgente encontrar um sítio que vendesse café. Estávamos relativamente afastados do centro e não havia nada aberto. Entretanto, de uma casa próxima, abriu-se uma porta e saíu um senhor vestido de fato de macaco a seguir para o trabalho. Educado, disse-nos bom dia. Respondemos e aproveitei para lhe perguntar onde é que podíamos tomar um café ali à volta uma vez que a minha companheira queria tomar um café. – Pois, aqui mesmo! Ainda tenho cinco minutos e acabei agora de fazer café para mim. Não vos digo para entrarem que a casa é pequena e estão todos a dormir... mas já vos trago o cafecito! E assim foi. Minutos depois, trouxe duas chavenas de café. Eu expliquei que não bebia café... quis oferecer-me um trago de rum... que educadamente recusei. Não aceitou dinheiro. Oferecemos-lhe cigarros dos nossos que guardou para fumar depois. Aguentámos por ali, nos bancos de jardim mais uma hora, depois, já próximo das oito e meia da manhã, seguimos para aquela que seria a nossa casa nos próximos dias. Chegámos e instalámo-nos num quarto disponível. Comemos o pequeno-almoço que merecíamos e tomámos o duche necessário. Depois saímos para a rua. Voltámos ao Moncada para ver as crianças na escola onde antes tinha sido um quartel. Comovemo-nos com a memória dos assassinados e torturados. Deambulámos pelas ruas mornas de Santiago. No dia seguinte, saímos da cidade e subimos ao Cobre. La Virgen del Caridad del Cobre, padroeira de Cuba, nada mais nada menos que a própria Deusa Oxum, Ela mesma! A Oxum atravessou o Atlântico à boleia dos navios negreiros e veio da Nigéria até Cuba, adoçar com beleza e mel este chão quente e molhado. Num caminho de cabras perto do santuário, continuámos a subir a montanha. Andámos horas pelos bosques cerrados e fomos aos locais secretos das práticas da Santeria. Vimos as oferendas aos espíritos dos escravos supliciados e aos deuses africanos. Descansámos nas pedras grandes junto a antigas minas de ouro escondidas na mata virgem. Banhámo-nos nas lagoas sagradas. Comemos churrasco de leitão e de cabra em quintas remotas perdidas na serra. Depois, voltámos a Santiago. Andámos pelos ginásios das artes marciais e pelas livrarias. Numa daquelas noites quentes, enquanto folheava livros velhos e falava de política num alfarrabista, a minha parceira descobriu um antepassado gigante das vulgares baratas. O bicho tinha o tamanho de um pardal e asas que, não fossem o peso do papo cheio, a fariam levantar voo. O grito soou na rua em frente ao alfarrabista para espanto do livreiro, susto meu e surpresa da vizinhança. Juntámo-nos uns quantos e aniquilámos o animal. Para celebrar a morte do monstro, dançámos e bebemos nos clubes do bairro. Salsa e rum. Na rua, com a vizinhança, acendemos uma fogueira onde, em coletivo, cozinhámos uma refeição para comemorar uma data qualquer, religiosa ou política. Não recordo nem interessa. Recordo que a festa foi regada a rum e durou até de manhã. Voltámos a sair da cidade para as matas envolventes. No porto arranjámos um barco que nos levou para uma ilhota com cocos, rum, iguanas, jacarés e a água do mar quente. Voltámos ao final da tarde com um pescador que fez o favor de nos recolher. Na aldeia comemos uma galinha de churrasco assada nas brasas de uma fogueira acesa para nos fazer o jantar. Depois voltámos para Santiago. Quando chegou o dia de apanharmos o autocarro de regresso, lá estávamos, ao cair da noite perto da estação. Como habitual, estava calor e húmido. Comemos umas sandes e, prevenidos, levámos um termo com chá. Desta vez íamos agasalhados para uma noite polar: casacos, camisolas e as mantas possíveis. Seriam umas oito da noite. O autocarro só saíria às nove e meia. Santiago completamente anoitecido. À minha companheira, apeteceu-lhe café. --- queres ir bater à porta do gajo que nos deu o café quando chegámos? O homem foi tão simpatico da outra vez? É aqui perto... --- Não, tenho vergonha de ir à casa das pessoas, mas o café era mesmo bom!!! Pragmática, decidiu-se pelo bar da estação que felizmente ainda estava aberto. Pedimos um café e um traguito de rum. Bebemos os dois em copos separados. Saímos de Santiago embalados pelos buracos da estrada e pelos boleros do rádio da camioneta, que em vez de dar notícias, passava música dos anos cinquenta. O motorista avisou que lamentavelmente o ar condicionado estava avariado e, por isso, se os passageiros quisessem fresco teriam de viajar com as janelas abertas. Despimos a roupa até ao limite do pudor. A brisa quente e húmida ajudou-nos a adormecer. Nem demos por parar em Camaguey. Sabemos ambos que Santiago de Cuba não sairá de dentro de nós.

O milagre do Alqueva

Diz-se muita coisa. Por isso fomos ver. Estávamos naquela altura do começo da primavera, com dias secos de sol ameno e noites limpas e geladas. Dois sacos-cama, os cães e meia-dúzia de mantimentos na mala do carro. Numa manhã de sol seguimos rumo à planície esquecida. Do subúrbio ao profundo rural. No Google víamos toda aquela água ali pronta a matar a sede de quem tem fome. Água doce como mel em terra seca e amarga de velhos solitários. Quando se começou a construir o Alqueva, políticos grandes e pequeninos anunciavam um novo mundo de prosperidade e fartura para um Alentejo velho e mirrado de gentes. São bons a anunciar futuros radiantes, os políticos. No início do milénio o dinheiro ia chegando, às vezes em jorro outras vezes a conta-gotas, sempre hipotecando os nossos bolsos coletivos. E a água foi subindo nas terras de sequeiro. Depois acabou-se o beiral a pingar dinheiro e veio a crise, mas o Alqueva já lá estava. Nós chegámos antes do almoço. Na aldeia vazia, a mercearia era o epicentro da vida. Sotaques cerrados e rostos fechados que se foram abrindo. Não, não viemos comprar terrenos, nem casas antigas para reconstruir. Comprámos carvão, ovos, chouriço para assar, alhos, pão e fruta. Falaram-nos dos hóteis que dizem que se vão construir. – Onde? – Lá me baixo, na barragem. – Nós não procuramos hotel, viemos só ver a barragem. Despedimo-nos e seguimos a pé para comprar vinho. Na taberna, sem rótulo, dentro de uma garrafa de litro e meio de água vazia. Tinto, naturalmente. Trouxemos também uns queijinhos duros e salgados. Depois montámos na mula mecânica que nos transporta e descemos pelo estaradão de terra até à àgua. Escolhemos uma sombra uns metros acima da linha da água para deixar a carrinha. Acendi o lume e soltei os cães. Tirámos fotografias à barragem que ali nasceu e ali ficou. Olhámos à volta e o vazio absoluto respondeu-nos com silêncio. Acendi um lume rasteiro entre pedras e assámos o chouriço. Comemos com pão, fruta e vinho. Depois, a sesta numa rede montada entre sobreiros. Na tarde calma, caminhámos na borda d’água espiando os pássaros e ouvindo os sons esquivos do grande lago. Pegadas de perdiz, raposa e eventualmente texugo, ou arminho. Pelo caminho, apanhámos poejo, hortelã e umas laranjas ácidas com tamanho de tangerinas de uma larangeira meio selvagem e esquecida. Cansados e felizes, voltámos para junto da carrinha, estava o sol a baixar. Vimos o pôr do sol sobre as águas mansas. Reacendemos a fogueira porque era preciso fazer o jantar e o frio da noite chegou sem pedir licença. As estrelas acenderam-se no céu. Dentro de um púcaro grande, sobre as chamas, deitei àgua para ferver. Num tacho velho de muitas andanças, o pão que sobrou do almoço partido aos bocadinhos, dois dentes de alhos migados, azeite, os poejos e uma folha de hortelã. A água a ferver no tacho sobre as chamas da fogueira chamou os ovos para escalfar. A açorda é sempre comida de conforto, sobretudo quando o tempo arrefece e a noite cai sem lua. Toda aquela água à nossa frente, parada, a refletir o brilho das estrelas alentejanas. Os cães deitados à nossa volta davam uma sensação doméstica à cena. Ali ficámos, a beberricar do tinto naquela conversa sem fim de quem se escolheu, entre outras coisas, para conversar até ao fim da vida. Perdemos a noção das horas e não sabemos quando fomos dormir. Mas sabemos quando acordámos. Era cedo e o sol devia estar pela altura dos joelhos. Os cães a saltarem felizes à nossa volta. Lavámos a cara e os dentes com água do jerrican, comemos fruta e queijo que tinha sobrado da noite. Recolhemos o material e os cães, limpámos de resíduos e memórias o lugar e seguimos viagem. Café na bomba de gasolina e fomos ao que viemos. Procurar os barros. Todas as olarias concentradas numa aldeia próxima, dispersas nas ruas desertas e montadas nas casas dos oleiros. A aldeia vive do barro e dos oleiros. Alguns eram construtores de telhas e tijolos e em meninos aprenderam a fazer copos, pratos e jarras. Hoje todos são artesãos. E todos continuam à espera do milagre do alqueva. Esperam pelo milagre de molhar a massa do barro com aquela água de ouro da barragem. Esperam o milagre do turismo que está para chegar. Pelo sim pelo não, dão preços às peças como se o milagre da multiplicação dos euros já fosse um facto. Depois, baixam para os valores de um país pobre onde vive gente pobre. Conseguimos comprar uma tigela grande e bonita. A próxima açorda já não se faz em alumínio. Continuámos a conversar. - Não tem empregados? - Não. Faço tudo sozinho!!! Não quero cá ninguém para me roubar. – E a agricultura? Dá emprego? – Às vezes contratam aí uns romenos ou indianos... – E portugueses? – Portugueses não! Que exigem o salário minino!!! O pequeno-empresário-artesão-comerciante, na lógica de quem emprega, sem pudores assume a miséria da fome que está disposto a pagar. Não aceita pagar a fortuna do que é salario mínimo... Tive vontade de lhe devolver a puta da tigela pelos cornos e de lhe exigir os quinze paus de volta. Felizmente a minha companheira percebeu antes de mim os meus desejos instintivos e levou-nos dali para fora. O sol riu-se da minha indignação na rua vazia. De volta à estrada, sempre a rodear a grande barragem. Olivais e mais olivais. Vazios. Oliveirinhas pequeninas, sedentas de químicos a crescer raivosas na planície. Na vila histórica parámos porque era preciso comer. Parámos numa tasca com sala reservada para refeições. Quatro mesas, apenas uma ocupada por uma família local. Com quem por ali parava. Naturalmente conversámos. Voltaram-nos a falar do desenvolvimento e do progresso do turismo da barragem. Outra vez o sebastianismo do pantanal. A revolução da agricultura que se anunciava era já uma realidade. Satisfeito por ter quem o oiça, o empresário-autarca explica que é desta que vem o progresso. Lembrei-o das promessas antigas. Diziam que iam produzir legumes todo o ano, que iam produzir a melhor fruta da península, que iam ter pastagens para bovinos da melhor qualidade... Afinal de contas, fizeram o lago para regar o olival... emprego ainda não chegou... chegou sub-emprego e semi-escravatura... Mas há o turismo que está aí a chegar. Isto é já uma realidade, mentiu-me convicto o homem que vende software de contabilidade e que tambem é presidente da junta. Contou-me que esperam turistas vestidos de cavaleiros que com armaduras feitas de tecnologia de ponta, venham os dragões velhos da pobreza e da interioridade. Dizem que os turistas vão chegar e que a coisa vai mudar. Turistas a sério, estrangeiros e loiros, enlatados em camionetas de luxo, porque não há comboio nem transportes de Lisboa para cá. Mas dizem que os turistas vão ficar temporadas inteiras nas dezenas de hóteis das margens do Grande Lago, que ainda não se construíram mas que já têm site na Internet e que podem cobrar fortunas pelas noites estreladas do Alqueva. E claro, há esse infinito recurso de elevado potencial económico que é o golfe. A água é tanta que vai dar para regar milhares de campos relvados onde vão florir bolinhas brancas de golfe. O desenvolvimento vem atracar nos cais fluviais, com emprego para os mais novos e reformas confortáveis para os mais velhos. Vamos vender todo este sol com sotaque alentejano em embrulhos de cortiça produzida artesanalmente. Todas as tardes vai haver workshops de nova-cozinha-alentejana. A sério que sim! Assim nos falou o autarca que diz que não é político. Bêbado de tanto dinheiro na terra molhada, despedi-me sem lhe dizer o que penso, para quê chamar estúpido ao homem, à frenta da mulher e dos filhos??!?!?! Voltei a descer à barragem. A água ali toda à espera. A água veio e afinal tudo ficou na mesma. Toda a agricultura que seria para criar emprego e desenvolvimento, foi modernizada nas tecnologias de sucção de recusros e de desfalque ao meio ambiente mas continua retrógada e medieval nas contratações de mão-de-obra. O turismo que faria prosperar a região continua à espera de se cumprir e o que aparece são projetos megalómanos de lavagem de dinheiro ou afirmações financiadas por maridos cansados a tiazinhas na pré-reforma que descobriram o alentejo numa revista em Cascais. O emprego que se esperava, esfumou-se nos vapores da crise e quando aparece é sasonal, mal-pago e sem continuidade. Os alentejanos continuam pobres e estão mais velhos e solitários do que nunca. As águas da barragem convidavam ao mergulho, desisti quando molhei os pés... demasiado fria. Pensei em pescar, não era oportuno. Atirei paus para os cães irem ao banho felizes. Depois foi preciso voltar para cima. Trouxemos a tigela de barro, vinho, fotografias e memórias de um futuro que se falta cumprir. Enquanto isso, com toda aquela água parada, os moradores das margens que outrora eram montados, esperam passivos por melhores dias e dedicam-se à pesca. Outros, mais velhos e sábios ensaiam suicídios levando cadeiras antigas para o campo e pendurando cordas grossas em sobreiros solitários.

Verde Brasil

Uma vez conheci a Vénus, estava ela de empregada de mesa. Foi numa tasca sujita em Salvador da Bahia. Um boteco que fica numa transversal à ladeira do Taboão. Sítio humilde de gente humilde, onde se come o que houver e se paga o possível. Boa comida em ambiente familiar. Conheci a moça em contexto profissional. Ela em trabalho, eu na vadiagem mas com fome. Mas não se ponham a imaginar estórias de amor e romances canalhas. Nada disso. Nem tal me passou pela cabeça... até porque eu seguia absolutamente bem acompanhado com a mais bela de todas as belas filhas de Oxum que alguma vez pisaram o chão quente da terra brasileira. Eu conto como foi: Entrámos no tasco com vontade de comer, pés cansados, olhos deslumbrados e crónico défice de reais no bolso. Sabíamos ao que íamos, fomos indicados por quem sabia onde comer bem e barato. Procurámos por “pêéfi”. Para quem não sabe, PF são as iniciais de Prato Feito, que consiste numa refeição empratada para gosto e carteiras populares. A empregada estava de trombas. Aquele ar carrancudo que algumas raparigas bonitas usam em permanência, proteção possível contra as doces cantadas de quem enfrenta o público com uma porta aberta. E se há cantadas doces a transbordar de melaço de cana de açúcar são os coros dos malandros da Bahia... por isso, não estranhámos o ar carrancudo da beldade. Chegámos já tarde para almoçar e ainda cedo para lanchar. Mas como a fome não tem hora, entrámos. Ela estava a limpar copos com um pano em cima do balcão. Quando lhe perguntei por “pêéfi” mal respondeu. Ou se respondeu, respondeu para dentro de si mesma. Desapareceu por trás da cortina javarda que separava o balcão de madeira das sombras cheirosas da cozinha. Tinha “pêéfi” sim. Sem mais palavras, voltou com dois pratos a transbordar. O “pêéfi” era carne seca de alguidar com arroz e feijão tropeiro. O feijão e o arroz servidos com generosidade, a carne cortada em pedaços pequeninos para render mais. A bebida era cerveja ou cola. Pedi Brama. Estava calor e o copo onde me serviram a geladinha devia estar roto. Depressa tive de pedir outra. Como não gosto de gritar “ópssete”, perguntei lhe o nome. Ela esclareceu: – É Vénus. E era. Sorrimos para ela, eu e a minha companheira de viagem e de vida concordámos que o nome coincidia com a pessoa. A Vénus, para provar que o era, e vendo que eu só queria mesmo comer o “pêéfi”, desarmada de dureza, sorriu para nós um lindo sorriso de baiana. A Vénus que conhecemos era, negra e grande. De ancas largas, peito relativamente pequeno e pose de deusa para não dar cunfia aos espertos. O amor é coisa bonita, mas não se serve ao balcão para acompanhar bejecas. Conhecemos a Vénus em Salvador da Bahia muitos e muitos quilómetros depois de chegar ao Brasil, mas foi como se aquele sorriso tivesse qualquer coisa de boas-vindas. Entrámos no Brasil num domingo ao amanhecer. Vínhamos de Assunción e era ainda noite cerrada quando atravessámos o Rio Paraná. Atrás, a mítica Ciudad de Leste, capital do contrabando e de todos os tráficos, à frente todo o Brasilão a começar ali na Foz de Iguaçu. Mais de metade de um continente e toda esta imensidão à nossa frente antes de chegar ao Atlântico. Na fronteira falaram-nos em português pela primeira vez depois de semanas em castelhano de muitos e variados sotaques. Mesmo com aquela tensão de fronteira e os guardas armados, foi quase como se nos sentissemos em casa. Uma hora depois da fronteira entre o verde da estrada, finalmente a chegada à central das camionetas. Na estação dos "ônibus" não havia nem “ônibus” nem autocarros. Nem bilheteiras, nem um quiosque aberto. Não estava niguém. Era domingo. Ninguém. Para ajudar, começou a chover. Entrámos no único táxi que ali estava parado. Acordámos o preço e seguimos viagem. Em conversa de circunstância e porque continuava a chover perguntei: - Tem chovido muito? - Pensi em chuva!!! Pensi em chuva bem forti! Pois olhi qui aqui tem chovido mais ainda! Rimos-nos os três. Estávamos apresentados e seguimos continente adentro. Do lado de fora do carro, o verde. O imenso verde que veste o continente. Aquele verde que se espalha e cresce em cima de tudo e de todos. Foram mais dois ou três dias de chuva e o verde a beber a água que caía. Depois veio o sol. E que sol. E o verde a absorver a luz que fazia. Entre todo aquele verde seguimos viagem. Para norte e para leste. Passámos por estados rurais, cidades grandes, cidades pequenas de província. Vales cultivados e selvas virgens, aldeias de boiadeiros e de pescadores. E o verde sempre lá. Vimos cataratas, que no Brasil são cachoeiras, e dormimos em cabanas de madeira que deixavam passar o ensurdecedor som da selva densa e verde à nossa volta. Nadámos no mar quente e comemos na praia peixe frito, caranguejos, espetadas de queijo, sempre abrigados na sombra do verde que vai até à praia. O Brasil será tudo aquilo que dizem dele. É tudo isso e muito mais. E, sobretudo, é verde em todos os tons de verde e em todos os sentidos da palavra. É um imenso e lindo continente verde com duzentos milhões de pessoas a falar português. Três coisas me impressionaram no Brasil: Primeiro foi o verde. Aquele verde, verde verde. Verde que atá para mim que sou daltónico, nos entra pelos olhos adentro. Verde como não há outro igual. Verde feito de água e sol em quantidades brutais que permite aquela beleza gritante. Depois foram as pessoas. Duzentos milhões de pessoas a fazerem pela vida como podem e como sabem. São motoristas, empregadas de limpeza, pedreiros, mecânicos, rececionistas, padeiros, canalizadores, bancários, serralheiros, assalariados agrícolas, polícias, talhantes, funcionários, cabeleireiras, ladrões, costureiras, cozinheiras e prostitutas... Uma imensa massa de gente humilde e trabalhadora, que tem essa secreta e preciosa qualidade de nas piores circustâncias encontrar a alegria necessária para sorrir e ir levando. Também me impressionou bastante o sorriso da Vénus no boteco esconso de Salvador. Aquele sorriso luminoso e aberto no rosto negro da empregada é o sorriso da própria América Latina que espera ainda a sua vez. Brasil sou gamado em você!

Macau e o espectro do Pessanha

Ao fim de vinte e quatro horas de viagens sucessivas, cheguei. Entalado entre um belga flamengo e um suíço alemão, passei as 14 horas do voo Frankfurt-Hong Kong a servir de recheio de sandes entre os dois gigantes e a ver filmezitos da tanga. Tentei reler os vagabundos da verdade do J. Kerouc, mas sempre que me conseguia concentrar havia sempre alguém que chamava a hospedeira, coisa que disputava a minha curiosa atenção. Finalmente a máquina baixou e eu lancei ferro nos mares da China. Hong Kong é imensa e organizadinha no pior sentido da palavra. Admito que é um sítio impressionante. Mas faltou-me espaço. Os passeios são pelo ar para que os carros andem nas ruas. Lojas de todas as marcas vendem de tudo a quem possa comprar. Bancos imensos com pessoas apressadas a entrar e a sair. Carros, autocarros, motas, motorizadas e elétricos. Homens de fato, mulheres pintadas de fresco todas as manhãs. Alta tecnologia a cada passo. Ingleses e chineses a fingir que são ingleses. Até os canteiros onde crescem flores têm o símbolo da coroa britânica e não se planta uma flor sem um decreto assinado pela rainha. Que me desculpem os locais, mas detestei Hong Kong. Não me demorei. Mal cheguei, procurei o porto para sair. Para ir para Macau, naqueles anos de mudança de milénio, era preciso apanhar o ferry que liga a antiga colónia portuguesa a Hong Kong. Foi o que fiz. No barco, no meio de uma esmagadora maioria de chineses, a milhares de quilómetros do Rossio, pude ler indicações escritas em português. Senti como se tivessem lá escrito aquilo apenas para eu ler... Depois do ferry, Macau. Muita gente nas ruas, casas de banho públicas razoavelmente limpas e ruas com nomes portugueses. Toda a gente a falar chinês. Alguns, poucos, falam inglês. Quase ninguém fala português. E eu que ia à procura das memórias do Camilo Pessanha. Disseram-me que se come bem e que é dos poucos sítios do Oriente onde se pode beber vinho tinto a um preço razoável. Li histórias sobre casas de ópio. Segundo aprendi, os cabarets de Macau ficaram famosos no início do século XX pela liberdade vivida sendo dos primeiros locais do mundo com sexo ao vivo. Depois do banho, da refeição possível e do reconhecimento ao perímetro da pensão onde estava, caí num sono profundo. Seriam umas onze e meia da manhã. Acordei às cinco da tarde. Tinha menos de uma hora de sol. Saí a correr para ir ver a gruta onde contam que viveu o Camões. Cheguei ao jardim, estava a escurecer devagar, o busto do Luís Vaz plantado pr’ali numa pérgula. À volta da cabeça do poeta senhoras de 70 a fazerem tai chi. A inscrição numa placa de mármore em letras douradas. Deixei as senhoras a praticar e fui jantar para o porto. Depois, porque o meu fígado naqueles dias ainda trabalhava com a força do motor de um rebocador, fui para os copos. Em Macau, naquela altura, pode dizer-se que a noite era animadita. Às cinco da manhã eu ainda sem sono. Às seis, o sol a nascer, as portas dos bares a fecharem e as portas das mercearias a abrir. Voltei a pé para a pensão a praticar o cantonês que aprendi repetindo a frase: quero uma cerveja. Deixei a janela aberta para acordar com o sol e acertar o meu relógio biológico com a Ásia onde estava. O sol cumpriu o seu papel, a ressaca também contribuiu para que a cama me cuspisse cedo. Seriam umas dez da manhã quando saí para a rua porque, tal como aprendi na noite anterior, “a casa é feita para os gatos capados e para os cães doentes”. Na esquina da Rua de Pequim com a Rua de Shangai, à sombra do Casino Lisboa, há a esplanada do Imperador. Uma rua sem trânsito, mas com muita animação. Comi ovos estrelados, fruta, e bolachas que levava na mochila. Vieram ter à minha mesa três senhoras chinesas a propor companhia. As três lindas e de sorriso profissional e genuína simpatia que não desapareceu nem mesmo quando se foram embora depois de eu lhes perguntar se não me pagavam outro pequeno-almoço. Depois de comer, decidi-me por ir ao que vinha. Fui procurar pelas memórias do Camilo. Pensei que fosse fácil. Mas estava enganado. Por onde quer que fosse, tudo traduzido em português que é também língua oficial de Macau. Nas livrarias, livros trilingues, em cantonês, mandarim e português. Desde a arquitetura à culinária. Milhares de patacas investidos na reconstrução de monumentos. Até um busto do João de Deus espetaram numa esquina. Nomes das ruas todos em português. Mapas, guias, revistas escritas em português que meia dúzia lia. Milhentas referências ao Luís Vaz. Nenhuma referência ao Pessanha. Fui à biblioteca portuguesa. Quis ir aprender. Sobre o Luís Vaz, que merece todas as homenagens que se lhe façam, parece que nem sequer esteve por aqui... Uns dizem que sim, outros dizem que não, mas não há certezas... Apesar disso, em Macau temos o zarolho em todo o lado: o Parque Camões, as estátuas ao Camões e quinhentas mil referências ao Camões. Relativamente ao Camilo, o imenso vazio. Do Pessanha, nada ou tudo o que que há é muito pouco. Naquele tempo, e falo de há menos de vinte anos, nem uma casa museu, nem estátuas, nem referências, nada. E hoje, em 2020, não me parece que seja diferente. Procurei na livraria portuguesa, falei no Camilo Pessanha e mostraram-me um livrito que foi publicado por favor pelo Instituto da Cultura (correspondente ao Ministério do Governo Regional). Explicou-me o livreiro que o livro foi publicado mais por carolice de um tipo que vive em Macau e que conhece e aprecia a obra do Pessanha do que por opção de política cultural portuguesa. Li o que pude no livro que me vendeu barato e continuei na busca da memória do Camilo, fui ao cemitério de Macau. Andei à procura da campa do poeta. Com muito esforço, lá encontrei. Está enterrado com a mulher e com o filho, numa campa comum no meio do labirinto das outras tumbas. Deixei-lhe três rosas brancas. Naquele tempo, o governo português e a diplomacia cultural, coitadinhos, não tinham dinheiro para pôr flores na campa do homem. Nem sequer havia orçamento para mandar limpar aquilo. Tenho a certeza que agora é diferente! Eu, que ignorante me confesso, grunho e suburbano, a persistir no Pessanha. A pensar que, se houve alguém que fez uma fusão de culturas entre a China e Portugal e que marca bem o orientalismo lusitano, esse alguém foi o Camilo Pessanha. O gajo que nasceu em Portugal e morreu na China (Macau é China). O intelectual que leva Coimbra onde estudou, para a China e aprende cantonês e os modelos culturais chineses. O poeta que estudou direito como todos os outros intelectuais da viragem do século XX e que vai ser advogado em Macau. O tipo que colecionava porcelanas e pinturas chinesas. Que escrevia inspirado na estética poética tradicional chinesa e que inaugura o modernismo em português. Compôs poemas modernos sem os escrever, memorizava os textos e dizia-os na tradição confucionista. Passou a sua curta vida a fazer e a memorizar poemas, a trabalhar como advogado, a fumar ópio, a passear os cães e a fazer filhos. Deixou uma marca do caraças na literatura do século XX com o livro Clepsidra, que os amigos editaram e ainda hoje é objeto de estudo e de teses. Quem melhor que o Camilo Pessanha para ser o símbolo da lusitaniedade no oriente??? Daí o meu espanto sobre o vazio de Pessanha em Macau. Acontece, e isso aprendi eu sem que me ensinassem, que o Dr. Pessanha fez inimigos por aqui na colónia de Macau. Em particular, cultivou inimizades entre as elites locais. Os portugueses em Macau, que não gostaram de ver o Dr. Pessanha a defender chineses contra os colonos portugueses... Ninguém lhe perdoou essa ousadia de querer considerar os chineses como iguais. Nem essa nem as outras que chocaram a sociedade colonial e conservadora do princípio do século XX. Camilo Pessanha, vestia-se à chinês, vivia com uma chinesa, tinha filhos que educava como chineses e sobretudo trazia a génese de ideias republicanas que difundia no liceu onde dava aulas. Os defensores dos bons costumes não lhe perdoaram. Arranjaram maneira de o despedir do liceu e de acabar com a sua carreira como advogado. O próprio Camilo, com o seu vício de se encharcar de ópio, também facilitou a coisa. Vendeu a coleção de porcelanas para alimentar os filhos e o vício. Morreu tuberculoso. O sogro, que nunca gostou dele, criou-lhe os filhos. A viúva substituiu-o por um comerciante. Os outros portugueses de Macau lamentaram cinicamente e aliviados disseram que nunca devia ter vindo. A todos interessa apagar a memória dos passos do Camilo. Passei mais uns dias em Macau em companhia do seu espetro. Comi e bebi bem em Macau, mais do que o necessário. Perdi-me várias vezes no labirinto das ruas e gostei de me perder. Numa manhã de nevoeiro, deixei Macau e entrei pela China de regresso à Europa. Antes de sair, vi escrito em letras grandes numa solene placa de pedra que ocupava toda uma parede: A PÁTRIA HONRAE QUE A PÁTRIA VOS CONTEMPLA. E eu, que metade de mim é sempre do contra e a outra metade nunca está a favor, agoniei-me com a hipocrisia posta na pedra. Senti vergonha da pátria que apagou a memória do Pessanha. Lembro-me de ter pensado naquele momento que, se tivesse dinheiro, tempo e sete vidas como os gatos, gastaria uma dessas vidas para ali ficar a encher-me de ópio num bordel esconso, quis ficar por ali, eternamente a planar e a compor poemas sobre amores com olhos em bico. Só para desonrar a pátria que nos pariu contemplados!

Lisboa que fermenta

Lisboa fermenta de gente em todas as esquinas. Novos, velhos, ricos e pobres. Muitos pobres. Muitos estrangeiros e muitos portugueses. Americanos, alemães, gregos, chineses e ingleses a fazer compras e turismo. Outros, portugueses, chineses, indianos, paquistaneses, equatorianos, brasileiros, e cabo-verdianos a trabalhar. A carregar malas, servir a comida, lavar a roupa, passar a ferro, limpar os quartos, conduzir tuque-tuques, carros, autocarros e bicicletas para os turistas passearem. À volta mais portugueses, angolanos, guineenses, ucranianos e romenos a destruir casas e a construir hotéis, hosteis e casas onde se alugam quartos. Portuguesas e brasileiras e meninas de outras e várias nacionalidades a prostituírem-se amando com dinheiro contado em todas as línguas. Outros a fazerem contas e alugarem espaços. A venderem casas e a comprarem armazéns vazios. Organizam-se eventos, monta-se e desmonta-se montras e expositores. Corre-se muito para coisa nenhuma quase sempre para se chegar a horas onde não se faz falta nenhuma. Muitos tiram fotografias a sorrir, outros permanecem invisíveis deitados nos passeios. Compram a comida feita em esferovite numa máquina, pagam com cartão, e correm para casa onde vão jantar sentados numa sala em silencio respeitoso enquanto na televisão, um chefe conceituado cozinha principescas e requintadas refeições. Com os óculos da tecnologia já tudo sabe ao mesmo, só os preços mudam. Chamam modernidade à coisa. Lisboa é uma cidade absolutamente moderna. Dizem. Aqui há umas duas semanas tive uma reunião de trabalho num daqueles edifícios antigos, cheios de janelas viradas para o rio, com tectos altos que em tempos foi um armazém e que agora é qualquer coisa work. Por trás e em cima a Graça. Em baixo o que resta dos comboios, um porto com um hotel a flutuar e depois o rio. Fantástica vista sobre a margem sul. Mesmo por cima da estação de Stª. Apolónia. Porque cada vez é mais difícil andar de carro em Lisboa, atravessei o rio cedinho. Andei até Santa Apolónia, estação de eternos encontros e precisamente onde tinha marcado este. O sol de tímido de um novembro ainda seco, por volta das oito da manhã já não queima nem aquece, mas Lisboa a despertar convida sempre ao passeio. Saindo do barco, cruzei o Jardim do Campo das cebolas na direcção à casa dos bicos. Entre duas palmeiras crescidas e protegida pelos contentores do lixo a instalação montada. Se não fosse miséria seria– arte pós-moderna: Um carro de supermercado cheio de garrafas vazias. A estrutura que resta do que foi um aparador de sala. Uma mesa de esplanada da em plástico branco com uma perna partida. Caixotes de papelão dobrados a fazer de enxerga e um saco cama sujo por cima a compor. Sentado sobre uma lata de tinta vazia estava um homem eslavo, estrábico, enorme e alcoolizado. Indiferente a quem passava, escrevia em cirílico num caderno nauseabundo o que pareciam ser versos. Descontente com a organização do mobiliário urbano, entediava-se um polícia novinho. Sem se preocupar com a duração da espera, uma equipe de limpeza de trabalhadores da câmara de Lisboa. Pressionado pelos taxistas presentes, na insegurança dos seus vinte anos e na estatura média mediterrânea o policia tentava impor autoridade ao gigante russo: - Já te disse que tens de desocupar a via, que as senhoras querem fazer o trabalho delas e estas coisas têm de sair daqui.... As três trabalhadoras de fardadas amarelas com listas florescentes e escrito CML na costas, duas delas falavam entre si em crioulo, a oura, mais nova, mantinha os fones nos ouvidos. As três juntas assistiam à cena como se fosse uma telenovela. À volta, alem de mim estavam quatro japoneses com jet-lag e um casal de dois rapazes espanhóis ainda meio ébrios. Estava também um americano gordo com uma namorada asiática de xaile fadista pelo ombro, minissaia e umas pernas absolutamente e completamente perfeitas. O russo fingia que não ouvia o polícia e ria-se.... Olhava as pernas da namorada do americano sem pudores. A rapariga, alem de bonita era afoita, pôs a mão da anca na boa tradição das varinas e devolveu o olhar ao russo. Por nós passou uma senhora muito bonita, apressada e risonha na casa dos cinquenta que em português do brasil falou: – Sascha, você tem de sair daí cara, as moças quer limprar... vá que eu logo, logo trago pão e o que sobrou dos jantares de ontem para você. Depois sorriu para o polícia, para os taxistas e para mim. – Ele tadinho não faz mal não... ajuda até a arrumar a esplanada do restaurante e se lhe peço vai pôr o lixo... diz que ficou assim de desgosto de amor...tadinho! O Sascha abandonou o seu posto permitindo às empregadas da limpeza que armadas de ancinhos se dedicaram a arrancar a merda de pombo à relva do jardim!!! Calado gigantesco e insolente, o russo foi-se sentar num dos bancos do jardim a despejar um resto de uma garrafa de tinto O polícia, ficou na conversa com os taxistas. Um dos fogareiros mais velhos, desabituado de ter a autoridade tão próxima sem ser para passar multas, comentava para a assistência que entendia português e que era apenas eu e o polícia. - Olhem para isto, até tem limpeza ao domicílio de borla!!! Casa com jardim, vista para o Tejo, um polícia a fazer segurança e empregadas para lhe limparem o jardim e uma gaja toda boa que lhe vem trazer a comida! Parece um ministro!!! Solidário com a gargalhada geral dos taxistas e do polícia, também o russo riu. - Eta maia datcha bled, eta maia datacha!!!*1 Aqui o rapaz poliglota de doca e balcão de taberna, apanhou o sentido. Em tempos remotos aprendi umas palavritas do chamado russo de praia e por isso saquei o sentido - “ É a minha casa de campo, pá, é a minha casa de campo!!!!” Porque também eu estava a ficar acossado pelo bicho voraz da pressa, segui para a minha vida deixando os taxistas, o policia, mais o sem-abrigo e as jardineiras a rirem ao sol... A minha cidade é assim mesmo. A modernidade pode chegar quando quiser. Pode vir a galdéria da modernidade com a bolsa de marca a pingar euros a comprar para depois despejar. Pode vir a modernidade com dedos sabujos pagar aos empreiteiros para mandarem a baixo paredes antigas e construírem condomínios onde os pássaros fazem ninhos. Pode a modernidade construir, mandar pintar e depois vender, ou alugar, ou subalugar ou pôr a render. O que a modernidade quiser é lei porque a modernidade compra a lei. Que se lixe a modernidade. A modernidade não tem hipóteses em terra de poetas alcoólicos e zarolhos! Enquanto houver quem se recuse a pagar para pisar o chão, se sirva do sol para se aquecer e do Tejo para inspirar versos, a modernidade não encontra cama para se deitar. Enquanto houver quem vá bebendo vinho sem se preocupar com o preço da garrafa porque não a pagou a modernidade não factura. Enquanto houver quem fique a apreciar as pernas das varinas, tenham elas os olhos em bico ou a pele da cor que tiverem, Lisboa continuará a ser Lisboa e a modernidade não aterra na Portela.

Havana, Um caso sério de amor

Quando te vi pela primeira vez, estava com frio e febre. A desejar chão firme para pisar, um banho quente, roupa confortável e uma manta. Foi no inverno e chovia. Olhei-te de relance através do vidro embaciado da janela fechada do táxi onde seguia. Confesso que mal reparei em ti. Vi-te escura e mal iluminada debaixo dos candeeiros escassos e gostei. Mas só isso. Nessa noite estava demasiado focado no meu mal-estar para te olhar. Tinha vintes e tais e achava que estava definitivamente imunizado às crises de paixões súbitas e ainda mais ao amor crónico. Estava enganado, claro. No dia seguinte fiquei de cama. Febre alta em clima tropical que me fez delirar. De ti senti apenas o perfume que entrava pela porta do quarto e vislumbrei-te na luz coada pela janela. Comi o que tinha na mochila e bebi chá. Voltou a chover à noite. Não esperei pelo terceiro dia para me levantar e caminhar. Na manhã seguinte, tomei o duche possível com uma caneca e água aquecida num fogão cheio de fugas. Mudei de roupa, saí e encontrámo-nos definitivamente. Nunca mais nos separámos. Nunca mais saíste de mim. E eu ficarei em ti enquanto viver. Naquela manhã, combalido, fui aos meus compromissos, ainda febril. Alguém me disse que tinha de me tratar e ser visto por um médico. Fui ao teu hospital e fizeram-me uma bateria de exames. Diagnosticaram-me escarlatina. Tinha trazido a doença do meu filho que entre abraços e beijos de despedida me contagiou, o rapaz teria uns dois anos. O médico, espantado perguntou: – Mas a escarlatina não está erradicada na Europa? – Pelos vistos não! Respondi insolente. Para se vingar deu-me ele mesmo uma injeção que doeu horrores, mas que me curou. Fui à farmácia e, com a receita manuscrita, deram-me precisamente seis comprimidos, contados com uma pinça para dentro de um frasco de vidro. Aqueles que precisava para me tratar, nem mais um. Estamos em período especial, desperdício zero, disse-me o farmacêutico. Depois pediu-me para voltar a devolver o frasco, coisa que não fiz e por isso ainda hoje o devo ter para aí metido nalguma caixa com recordações avulsas, entre recordações de ti. Viste-me a coxear agarrado ao rabo dorido e riste-te de mim, para mim. Disfarcei a dor e mantive a dignidade num caminhar mais lento. Depois seguimos juntos pelas tuas ruas. Lentamente e gingando, ao meu ritmo convalescente, que é o teu ritmo de sempre, sem pressa. O amor aconteceu-me inevitável. Claro que me apaixonei por ti. A cor morena, o riso fácil e todas essas tuas curvas. O efeito luminoso que fazes deitada recostada no mar. O teu riso de portas escancaradas, a música com que falas e todas as cores que usas. A tua descontraída disponibilidade e esse eterno convite nos olhares. A sensualidade intensa que noutras seria decadente e vulgar, mas que em ti são absolutamente perfeitas. Apaixonei-me pela tua cultura sem pedantismos e pela tua dimensão imensa e concentrada. Pelo o teu canto, pelo teu encanto e, naturalmente, por todos os teus secretos recantos. Ficámos desde esse remoto inverno do século passado, irremediavelmente juntos. Eu estava alojado numa casa afastada do centro, já depois da Mariana De Hemingway, porque amigos de amigos conheciam a dona e facilitaram o aluguer. Em frente à porta de entrada, uma estrada de terra batida. Do outro lado da estrada uma casa mortuária onde os familiares e amigos se despediam e velavam os falecidos. Como os mortos em Cuba não são velados nas igrejas, chegavam os corpos dos hospitais ou das casas onde foram vivos diretamente para a casa mortuária. Nos fios elétricos por cima, às vezes multidões de pássaros pretos com a cabeça e o pescoço vermelho, outras vezes os fios vazios de pássaros. Eram abutres. Auras, esclareceste na tua voz cantada e rindo para mim. Percebi que vinham em bando sempre que havia corpos para velar. Demasiado tétrico para mim. E para ti também, tu sempre tão alegre, a morte e os abutres não condiziam com o teu sorriso de luz e com as cores com que te vestes e despes. Mudei-me para mais perto. Um apartamento no centro, perto da Plaza de La Revolución. Debruçado da varanda via-se o icónico mural do Ché. Era um apartamento pequeno: um quarto, uma sala, uma varanda imensa, uma cozinha minúscula e uma casa de banho igualmente pequena. Dava e sobrava para nós. Também era de um amigo de um amigo. Médico e celibatário prestes a partir naqueles dias em missão para o Congo. Subalugou-me a casa na condição de não usar o quarto nem a cama que eram dele e só dele. Devia dormir no sofá da sala, não estragar nada, dar de comida ao papagaio que se chamava Lukumi, cumprimentar as vizinhas, não fazer festas ruidosas, nem tocar na coleção de máscaras africanas nem nas garrafas de rum. Cumpri quase na totalidade o acordado. Ao fim da tarde voltava, tomava banho e ia para a minha casa que era aquela sala forrada de livros e máscaras africanas. Em vez de me sentar na cadeira de baloiço a desfrutar da biblioteca aberta só para mim, era para ti que eu corria. Tomava banho no chuveiro elétrico, ouvia a tua voz pela varanda aberta, dava de comer ao Lukumi e voava ao teu encontro. Não cumpri o que me propus quando entrei no apartamento do médico: não desfrutei dos livros nem consegui ensinar o papagaio a dizer "Barreirense". Li transversalmente uma coletânea de poesia latino-americana. O Lukumi, quando me vim embora, de vez em quando dizia "foda-se", expressão que não me lembro de lhe ter ensinado. Tu ficavas à minha espera na porta da rua, depois vinhas e mostravas-me a natureza de todas as tuas coisas. Prosseguimos nas tuas noites mornas e longas, contigo a contares-me segredos e a plantares em mim todos os afetos. O teu cheiro, a tua música, o teu hálito doce perfumado de rum ficarão sempre comigo. A tua temperatura e toda essa disponibilidade para ser feliz nas coisas simples que me habituaram mal. Aprendi a nomear o universo, no teu sotaque nasalado e melado. Comi e dormi em ti por semanas consecutivas sem me fartar nem um bocadinho. Quando tinha de me afastar, apanhava os transportes possíveis naquele período especial e regressava depressa. Voltava sempre todas as noites para o doce de ti nas tuas ruas. Nesse período de intensa paixão, pela primeira vez, senti vontade de largar tudo e de me juntar a ti. De vir a Portugal buscar meia dúzia de coisas e ficar contigo. Ou nem sequer vir. Por magia teletransportar os meus e ficarmos todos juntos. Os grandes amores são assim, insensatos e loucos. O tempo voou enquanto estivemos juntos, depois tive de voltar e estranhei-te. Passaram muitas luas sobre o Atlântico que nos separa até eu poder regressar a ti. E quando voltei, lá estavas à minha espera à porta do avião, a sorrir disponível no teu doce perfume de fruta, rum e tabaco. Depois foi sempre assim de todas as vezes que voltei. E cada vez que tenho de sair de ti, sempre que tenho de vir embora, dói-me. Dói sempre sair de ti. Não posso nunca dizer que sou teu, porque não sou. Nasci e cresci noutras latitudes Não posso por isso dizer que sou teu. Mas a verdade é que não minto se disser sobre ti ao mundo que tu és minha. Que continuarás a ser minha sempre. Porque um caso destes de amor, não acontece duas vezes numa mesma vida. Se pudesse voltava agora mesmo, porque de ti nunca saí. Parabéns meu amor. Parabéns Havana, estás a fazer quinhentos anos e nas fotografias que me vão chegando, a cada maré que te sobe pelo Malecon, estás cada vez mais e mais bonita. Mais linda que nunca. Ganas de ti mi amol! TQMLH.

Cafecito nos Andes

Quem está acima dos três mil e quinhentos metros de altitude está inevitavelmente bêbado e maldisposto. Acima dos quatro mil, deixamos de estar bêbados para estarmos apenas e muito maldispostos. Pelo menos comigo é assim. Logo eu, criado na borda d’água, nascido com o mar nas veias, a morar no rés-do-chão, eu, que se tenho de subir ao telhado para substituir alguma telha enjoo logo! Ver-me assim nas alturas agonia-me. Vem isto a propósito das voltas e revoltas que o destino decide dar. O destino, todos já sabemos que é um fado corrido e sem decoro que quanto mais repenicado for, mais voltas dá. Pois foi este fado andarilho que me levou um dia a pisar o chão antigo das montanhas dos Andes. A coluna vertebral da América do Sul. Os gajos engravatados que vivem nas capitais sul-americanas dizem que os Andes têm dono e dizem que são eles os donos das parcelas dos Andes. Dizem: os Andes do Equador, os Andes do Chile, dizem eles que são os Andes Equatorianos, os Andes Peruanos, os Andes Bolivianos, os Andes Argentinos... Tudo tanga. Conversa para inglês ver e comprar minério arrancado à montanha. Os Andes têm donos sim, mas são aqueles que lá moram em cima, nas alturas onde o ar escapa dos pulmões e onde o vento seco e gelado corta as orelhas. Um gajo mais distraído, olhando para o mapa, até acredita nessa história dos países serem proprietários dos Andes. Mas subindo à montanha, percebemos que entre o papel impresso no mapa e a montanha vai uma distância tão grande como a imensidão abarcada pelas asas abertas do condor. No rarefeito ar, na estreita berma da estrada estão os verdadeiros donos da montanha. Na curva que se retorce na vertigem das alturas e na agonia do enjoo, é aí em cima que os donos dos Andes moram. Entre alpacas e pedras velhas gretadas pelo gelo, pelo sol e pelo vento. Os donos da montanha estão lá em cima, ao lado de uma cancela ferrugenta que chia quando tem de abrir. Abrigados nuns barracões, vestem-se de lã grossa, de fardas incompletas e variadas de polícias, guardas, militares, pastores, bombeiros ou trabalhadores das estradas. São índios, cholos mestiços e eventuais descendentes de emigrantes europeus. Ficam lá em cima durante meses em intermináveis comissões de serviço à sombra de uma bandeira e dos brasões que representam os estados que lhes pagam mal, tarde e a más horas... Nos barracões à beira da estrada funcionam as alfândegas e onde as fronteiras vendem vistos, chá, casacos, empanadas, café, água, serviço de banho e posto médico. Lá em cima, onde se alugam prostitutas, carros velhos e mulas. São mecânicos, xamãs, cambistas de moeda e outras coisas que tiverem que ser. Vivem do salário e daquilo que a montanha pode dar a quem tiver os olhinhos abertos e os dedos prontos. Só para quem se consegue adaptar à falta de ar e às tonturas permanentes. São guardas, fiscais alfandegários, militares e outros burocratas e todos os outros. Também de ser obrigatoriamente enfermeiros e médicos. E há taberneiros, bruxos, prostitutas, lenhadores, canalizadores, mecânicos e, às vezes, agentes funerários. A natureza dos Andes ensina a autossuficiência. A quem por estrada cruza a montanha, impressionado pela majestosidade dos picos nevados, agoniado da vertigem e a asfixiar da altitude, a quem nestas condições, pergunto eu, ocorre queixar-se das mãos untadas do soldado que fecha os olhos e deixa passar contrabando em troca de uma garrafa de bagaço? Quem é que se vai dar ao trabalho de moralizar a fronteira? O soldado que ali está há meses, sem o conforto de uma inspiração profunda e sem uma cama só para ele. O soldado que se aquece agarrado ao púcaro de alumínio do seu chá de coca. Alguém o vai criticar o soldado por virar as costas enquanto uma carga passa? A estrada pertence-lhe, não só ao soldado, mas a todos os que ali vivem isolados nos postos de fronteira. A montanha é terra de ninguém, mas a fronteira é dos que lá estão. Nós viajámos dois dias e uma noite sempre a subir. De autocarro que até era confortável, diga-se. Sempre a subir cerros e escarpas, cada vez mais altas e despidas. Para trás, o gelado Pacífico, à frente, a montanha. A estrada propícia a enjoos, sonos, conversas, tédio e mais enjoos. E mais sono, cada vez menos conversas e cada vez mais tédio. Do lado de lá do vidro a paisagem majestosa. Durante as paragens obrigatórias para o xixi, para o chá ou café, o ar frio e escasso da alta montanha. Pedras e quase nenhuma vegetação. Às vezes nos vales profundos, ribeiros barrentos a correrem violentos entre as pedras. Poucas pessoas, algumas alpacas misturadas com cabras. Nas paragens, as putas e os militares, os policias, possíveis traficantes, comerciantes, pastores de gados vários e nós. Todos a avaliar-nos uns aos outros e identificando riscos, perigos e oportunidades. A última paragem em território chileno, foi a mais demorada e mais tensa. Saímos todos do autocarro e o motorista abriu o compartimento das bagagens. Policias e militares vieram dar palpites de arrumação enquanto não chegou um outro autocarro em sentido contrário vindo da Argentina para entrar no Chile. Chegado o autocarro, deixaram de se mostrar interessados na mercadoria, nas mochilas e nos cigarros que eventualmente trazíamos e passaram diretamente ao seu ofício de fiscalizar a entrada da fronteira chilena contra os perigos que podem vir da Argentina. As pessoas que viajavam connosco no mesmo autocarro atarefaram-se nas suas bagagens. O ar tinha pouco oxigénio e muita tensão nervosa. Dois camionistas brasileiros, do interior do Mato Grosso, viajavam de regresso depois de levaram uma carga de madeia e sabe-se lá mais o quê de Cuiabá no Brasil para Santiago no Chile. A fumarmos e a bebermos chimarrão cá fora, avisaram. Não se afastem nem baixem as vistas dos vossos troços.... tem muito bandido aqui capaiz de botar um quilo de cocaína no seu malão para passar na fronteira limpinho com seus dez quilos no saco! E cuidado com os cara da polícia, aqui polícia é pior que bandido!!! Voltámos a entrar advertidos para dentro do autocarro e uma hora depois estávamos na fronteira argentina. Todos saímos de passaporte na mão. Nós os dois, com as nossas mochilas blindadas nas costas, mãos nos bolsos e fechos e as caras fechadas. Estava frio debaixo do telheiro onde parou o autocarro. À nossa frente, uma mesa comprida com o dobro do comprimento do autocarro. A um metro da mesa, uma linha amarela desenhada no chão. A linha devia ser branca cor da neve e da coca que o vento espalha lá fora..., mas como vos estou a contar a verdade, não vos pinto a linha e digo-vos tal e qual como aconteceu. Três polícias e dois militares. Os polícias de pistola à cintura, os militares de metrelhadora a tiracolo. Os polícias na casa dos ciquenta-sessenta, os militares entre os vinte e os trinta. O motorista depois de falar baixinho com o chefe dos polícias, recolheu os passaportes de toda a gente e informou-nos que era preciso pôr toda a bagagem em cima da mesa e esperar do lado de lá da linha amarela. Para nós foi simples, bastou tirar as mochilas das costas e pôr em cima da mesa. Para o resto dos passageiros, demorou mais um bocado… O grupo de desconhecidos que éramos há dois dias atrás no Chile, era agora uma família em apuros. Estávamos todos tensos. Muitos de nós com frio. Alguns a sofrerem de tonturas e nauseados. Queríamos todos sair dali e descer depressa a montanha. Eu entre os mais agoniados, a precisar de baixar dos três mil e quinhentos metros para acalmar aquela bebedeira parva que dá tonturas e cansa sem dar satisfação. Meia hora depois, o motorista voltou com os passaportes e veio falar com todos os passageiros: – Vamos dar qualquer coisa para os senhores guardas que aqui estão ao frio desde a noite passada, vamos dar-lhes algo para irem tomar um cafecito quentinho! Assim, à cara podre. Com um saco de pano preto, iniciou a coleta. As pessoas iam pondo notas e moedas como no peditório das igrejas. A minha companheira de viagem, desconfortável no telheiro gelado e preocupada com os pacotes a mais de cigarros e duas ou três garrafas que levávamos nas mochilas, disse-me para não me armar em parvo. Para de uma por uma vez na vida ser tolerante com o currupto. Para lhes dar qualquer coisa que nos pusesse a andar depressa dali para fora. E não sejas agarrado, vê se és generoso, que quero sair daqui. Fica descansada, vou resolver. Quando chegou a nossa vez, perguntei com cumplicidade ao motorista: - Os guardas aceitam euros? - Como não!!! claro que sim!!!! Até os olhinhos brilharam ao motorista, que devia ter parte no acordo com o guarda. Fiz as contas, remexi na carteira e nos bolsos e decidi-me por cinquenta. Acabada a recolha, o motorista entregou o saco ao políca mais velho que entrou no contentor a dizer boa viagem. O motorista satisfeito, esfregava as mãos: - Podem arrumar tudo de novo no compartimento de bagagens, vamos seguir viagem enquanto os senhores guardas vão tomar o seu cafecito! Meia hora depois, no conforto do ar condicionado do autocarro, a descer a montanha na direção das imensas pampas argentinas, perguntou-me ela: - Pagaste em euros para passarmos a fronteira? - Sim, claro. - Quanto deste? - Ciquenta. - Euros? Estavas generoso!!! - Não! Cinquenta cêntimos, para um cafecito dá perfeitamente!!!

Chuva galega

Foi numa daquelas alturas da minha vida que tinha tempo, mas não tinha dinheiro. Acontece-me com frequência. Também com frequência, mas mais raro, também me acontece o contrário, se tenho dinheiro, não tenho tempo... Bem, não querendo fazer das pessoas que têm paciência para me ler, nem meus confessores, nem meus gestores de conta e, muito menos, meus inquisidores, vou direto ao assunto e contar-vos daquela vez em que não me deixaram dormir em Santiago. Falo do Galego. O de Compostela. Eu tinha 19 anos e acreditava num universo infinito de possibilidades. Meti um saco-cama e umas latas de sardinha numa mochila e, num grupo que éramos dois, apanhei o comboio para o norte. Queria ir ver e viver uns dias numa terra liberta. Uma terra sem regras nem leis, nem donos, nem chefes. Por isso entrei num comboio daqueles noturnos que saía de Santa Apolónia pelas onze e chegava quando chegasse. No outro dia de manhã estávamos no Porto. Lembro-me que tinha chovido a noite toda e à saída de Campanhã entre as nuvens o sol brilhou e foi nesse dia que percebi porque é que o Porto é uma das cidades mais belas que conheço. Ou foi porque o sol brilhou entre as nuvens ou foi porque tinha dezanove anos e ia de viagem atrás de um sonho. Mas aquela manhã foi inesquecivelmente bonita. Vadeámos ao sol pelas ruas antigas e molhadas do Porto. Comprámos comida e voltámos a entrar noutro comboio já manhã avançada. Atravessámos a ponte férrea sobre o rio Minho ao entardecer. Chegámos a Santiago já noite cerrada. Ano compostense no início dos noventa e a cidade cheia, cheiinha a abarrotar de turistas religiosos. Padres, freiras e outros viajantes do mesmo género. Jantámos sardinhas, broa de Avintes e vinho verde debaixo de um candeeiro de um jardim. A ideia era apanhar um comboio regional até Lugo e subirmos às montanhas prometidas. Através de cartas, porque ainda não havia e-mails nem sms, tinha combinado com uns amigos chegar à aldeia remota e perdida em que viviam escondidos do mundo na tal comunidade livre. Na estação informaram-nos que para Lugo só havia comboio às oito da manhã. Eram umas dez da noite. E agora? E camionetes? Há? Para animar, começou a chover. Ficámos na estação até à meia-noite. Então vieram fechar a estação. Só abriam às seis e meia da manhã... Mas deixem-nos ficar... não estragamos nada. Ainda tentámos desesperados. Nada a fazer. A chuva carregou na força. Procurámos um sítio para ficar. Fomos procurar a estação da rodoviária. Era do outro lado da cidade, estava fechada, não se podia entrar nem pernoitar. E a chuva a cair-nos em cima. À chuva batemos à porta de vários albergues para peregrinos. Completo, completo. Padres, freiras e beatos a dizerem-nos sempre que não. A chuva cada vez mais forte e fria. Um padre de áculos de aros dourados e ar zangado, inclusivamente ameaçou com a polícia perante a nossa insistência. Tentámos algumas pensões que, ao nos verem chegar com ar e situação de facto de sem-abrigos, diziam que estavam cheios ou simplesmente não abriam a porta. Talvez estivessem mesmo cheios. Passámos à porta de uma agência bancária. Ingenuamente pensando que os bancos estão lá para um momento em que precisemos, entrámos no átrio de uma agência da Caja com o cartão multibanco. Ali dentro não estava a chover. Eu nem quis ver o saldo. Tirámos as mochilas encharcadas e estendemos os sacos cama que estavam razoavelmente secos. Dispusemos-nos para dormir umas horas. Não era confortável, mas estava seco. Não passou nem meia hora. As câmaras de videovigilância da altura eram rupestres, mas já trabalhavam. Alguém, sentado no seu cubículo a fazer o turno da noite, viu no ecrã da sua televisão obrigatória, entrar o jovem casal a dispor-se para dormir. Ficou atento e esperou a continuação do filme. Como não tinha mais ação, entediado, chamou a polícia e esperou para ver o que aconteceu a seguir. Nem uma hora depois de termos entrado, um carro parou do lado de fora e saíram três policiais para nos tirarem dali. Explicações em português e portenhol. É que não forçámos a entrada, veja, com o meu cartão entro aqui. Pois, e não encontrámos pensão, nem albergue e como podem ver está a chover comó caraças... Tivemos de sair à mesma. Pedimos estadia na esquadra até abrirem a estação dos comboios. Na polícia também há gente boa. Deixaram-nos pôr as mochilas num canto, usar as casas-de-banho e as toalhas secas. Estender os sacos camas não que já era abuso. Dormitámos umas horas nos bancos de madeira. A meio da noite chegou um carro patrulha. Era o chefe e vinha zangado. Tratou logo de nos pôr na rua e dar uma piçada nos agentes que nos desenrascaram. Outra vez molhados e com frio. Caminhámos à chuva mais de uma hora até à estação dos comboios. Ainda esperámos um bocado até nos abrirem a porta do chão seco. O dia nasceu chuvoso e comemos ovos cozidos que sobraram do farnel. Nessa noite de chuva, aprendi uma lição para a vida, quando chegam as tempestades, nunca devemos contar com ajuda de padres, bancos ou chefes de polícia.

Tigre de Ranthambore

– Espelho meu, espelho meu, há alguma criatura mais feroz do que eu? O espelho mágico, que não conseguia mentir a ninguém, muito menos ao tigre por quem tinha tanta deferência, disse a verdade: – Sim tigre, há, fêmea humana... A fêmea humana é a mais feroz e a mais perigosa de todas as criaturas que algum dia deixaram pegadas sobre o chão da terra. O tigre, por precaução, nesse dia de tempos remotos e mágicos, entrou na mata fechada e aí tem permanecido escondido. Foi assim no princípio dos tempos, é assim agora e assim será sempre. ... Sei do que falo. Posso provar, aconteceu-me a mim e vou contar-vos. Por volta da mudança do milénio, andando este vosso amigo a vadiar pelo calhau redondo e molhado de mar a que chamamos casa, tive oportunidade de me cruzar com um tigre. Um tigre dos verdadeiros, um tigre daqueles de quatro patas, enorme, de dentes e garras afiados. Um tigrão de voz de tremor de terra e olhos de mel. Encontrámo-nos os dois em campo aberto, ou melhor, numa clareira da selva. Não estou a falar de um encontro com um tigrito de circo por trás das grades de montar, nem estou a falar num tigre cansado a dormitar na penitenciária de um qualquer jardim zoológico, nem sequer num leopardo atrelado com correntes a dois guarda-costas ucranianos de um milionário excêntrico e pastilhado numa festa de transe. Nada disso. Estou a falar de um tigre em liberdade. Encontrei o tigre na mata mesmo! Aconteceu-me uma hora depois de nascer do dia, que é a hora em que acontecem as coisas mais importantes. O céu estava já cor de fogo no oriente e ainda azul escuro com estrelas no ocidente. Foi no Parque Natural de Ranthambore, perto da cidade de Sawai Madhopur, no Rajastão, norte da Índia. Toda a região pertenceu até aos anos quarenta a um daqueles marajás que vivia milionário do seu ofício colonial de lamber o cú aos ingleses e reprimir o seu próprio povo. O Marajá era literal e legalmente dono da terra e, na prática, também era dono das pessoas que por lá viviam. Isto acontecia desde a idade média até à independência. Da antiga reserva de caça do Marajá, o governo da Índia fez um Parque Natural onde hoje é possível caçar bichos, mas com a máquina fotográfica. Parece que para caçar com espingarda é muito mais caro e é preciso subornar o chefe dos guardas, isto dizem as más línguas, mas eu não me acredito. Cheguei a Rathambore na camioneta da carreira. Viajava com uma mochila, uma garrafa de vinho do porto, uma navalha e uma mulher. A minha companheira de viagem, não estava tão recetiva à ideia de conhecer tão profundamente a Índia quanto eu estava... E de bicharada, chegava-lhe vê-los na televisão. Cansados de uma viagem de doze horas pelas poeirentas estradas indianas, alojámo-nos numa tenda alugada nas traseiras de um armazém no meio da selva. O armazém que alugava tendas, tinha um muro alto e amarelo encostado à estrada, por trás e dos lados era a própria selva que delimitava o espaço. Dentro do perímetro, havia uma espécie de esplanada onde serviam refeições, uns balneários e uma casa de madeira que servia de receção. Na fachada, umas letras amarelas e verdes a dizer Eco Hotel Camping Resort, ao lado das letras a cabeça do tigre do Sandokan. Depois de chegarmos e formalmente nos registarmos, coisa que apesar de sermos os únicos, ainda demorou uma boa hora, usámos as latrinas que até estavam aceitavelmente limpas. Como não havia Internet para mandar notícias para casa, lavámo-nos, comemos e fomos dormir. No outro dia, era preciso acordar de madrugada alta para ver os tigres. Saímos ainda de noite. Da esquadra policial onde viviam os guardas da reserva, a uns quinze quilómetros dali, veio um jipe de caixa aberta com um motorista e um guarda armado. Subimos e apertámo-nos na lona dos bancos de trás com um casal de belgas carregados com câmaras e aparelhos que davam para equipar um estúdio de Hollywood. Os belgas vinham vestidos de camuflado e lavadinhos de fresco. Nós nem por isso.... Lembro-me que estava frio e não tínhamos tomado banho porque no camping hotel, não tínhamos água quente. Seguimos por caminhos de terra. Vimos pássaros esquisitos, javalis, veados, texugos e bichos variados cujos nomes não sei dizer. Finalmente, o carro parou à entrada de uma clareira onde um javali chafurdava na lama de um charco. O sol ainda não tinha nascido, mas já se via bem dentro da mata. O guia fardado de caçador e turbante carregou a espingarda em silêncio. Depois falou baixinho numa língua esquisita com o motorista. Para nós, disse baixinho no seu inglês "made in Índia" que tinha carregado a espingarda por precaução e que o tigre do qual seguíamos as pegadas, estava ali escondido, do outro lado, nos arbustos. O tigre confirmou a conversa do guarda e rugiu. Um rugido tão forte, grave e profundo que nos deixou a todos paralisados. Incluindo o javali que ficou congelado na poça onde estava. Um som que nunca vou esquecer. Os belgas foram os primeiros a reagir, em silêncio, coordenados como uma equipa de natação sincronizada, dispuseram o equipamento para filmar, fotografar e registar o som. Eu pensei: vou tirar a foto da minha vida para mostrar ao meu puto. O meu filho teria nessa altura uns cinco ou seis anos. A minha máquina fotográfica era daquelas tipo das lojas dos trezentos... sem zoom, nem foco, nem cenas dessas; proporcional às minhas competências enquanto fotógrafo. Procurei aproximar-me. O mais silenciosamente possível, desci do jipe e andei furtivo uns dois metros de máquina na mão. Silêncio total. Até os pássaros se calaram para ver o que ia acontecer. E aconteceu. Na selva rebentou uma explosão de violência tremenda. O rugido que soou naquele momento, pode não ter sido tão intenso como o do tigre... Mas veio em elevados decibéis. E falou em português. -- Porra pá!!! Estou farta disto!!! Venho pr’áqui sem condições nenhumas, dormir numa tenda, sem água quente, a ter de fazer cócó num buraco, comer caril de manhã, à tarde e à noite, a levantar-me a meio da noite, as casas de banho sem energia elétrica, sem poder usar nem a porcaria do secador de cabelo, venho eu para a Índia apanhar frio, frio!!! Sem tomar café, que não bebo um café decente desde que saímos de Lisboa... e, para cúmulo, tu e as tuas cenas! Agora sai-me do jeep para tirar uma fotografia ao Tigre??? Sabes a quantas horas estás do hospital mais próximo? Sabes??? Tou farta das tuas loucuras. Tou farta das tuas merdas!!! Já chega!!! Tou farta. Fartinha! Desculpa lá, mas isto não está a resultar! Tudo isto, em rajada. Gritado no norte da Índia para ser ouvido no Barreiro. Gesticulado como a senhora que aparece em tamanho pequeno no telejornal, a dar as notícias para os surdos-mudos. Segundos depois da feroz criatura se calar, as suas palavras ainda ecoavam no silêncio da selva. De facto, não estava a resultar. O tigre não ouviu até ao fim o discurso: foi o primeiro a fugir com o estardalhaço de canas e galhos quebrados. O javali fugiu a seguir, na direção contrária ao tigre a derrapar na lama. Os belgas ficaram zangados e ainda tentaram reclamar que lhes tínhamos estragado o filme, mas perceberam pelo olhar que ambos lhes respondemos que mais valia ficarmos todos por ali. Os guardas do parque, sensatos, arrancaram em silêncio e levaram-nos de volta ao hotel. Vendo as coisas pela positiva, não só se safou o javali que tinha a folha praticamente feita, mas também se garantiu mais um dia de trabalho e mais rupias aos guardas do parque porque os belgas haviam de voltar no dia seguinte. Para os meus amigos leitores, o que há aqui de importante a reter é a fuga do tigre. A fuga do tigre prova, definitivamente para todo o sempre, que em termos de bichos perigosos, a mulher é a mais perigosa de todas as feras. Sobretudo se lhe tirarem a bicazinha pela manhã, ou a possibilidade de usar o secador.

Aduana de Badajoz

Em criança, imaginava que as fronteiras fossem riscos no chão. Imaginava as fronteiras desenhadas a giz. Ou melhor: feitas com tinta branca grossa e com revelo, como os traços contínuos das estradas. Lembro-me de ser muito garoto e ir a Badajoz. Nessas viagens, percebi que fronteira queria dizer tensão legal latente e potencial confronto com as autoridades. Era puto, nos meus cinco ou seis anos, mas lembro-me bem. Ao chegar à fronteira, o carro parava numa fila. Na altura, eram os guardas-fiscais do lado de cá e os carabineiros do lado de lá. Entre as fardas, homens armados e símbolos nacionais estava eu com os adultos que me acompanhavam. Depois vinham os guardas pedir o passaporte. As declarações assinadas para o miúdo que era eu poder viajar. Mais os documentos do carro e outros papéis. Vinha então a pergunta, primeiro em português, depois em castelhano: - Transportam, café, bebidas alcoólicas ou armas? Os adultos faziam um ar sério, diziam que não e mostravam as folhas guardadas em pastas e documentos tiradas do bolso do casaco. O guarda, com ar de caso, fazia o seu papel. Inspecionava a documentação, depois olhava sério para cada um de nós e outra vez para a documentação. Às vezes, mandava abrir as portas e revistava o carro. O interior, debaixo dos bancos, a mala, o motor e verificava papéis e números. Lembro-me de um tipo mais zeloso que uma das vezes até quis ver o cesto onde levávamos o farnel. Quando a inspeção acabava, lá nos mandavam seguir e passavam a chatear as pessoas do carro que vinha atrás. Parecia que era um favor que nos faziam deixar-nos passar aquela cancela. A seguir vinha a aduana. Caso não saibam, aduana é como os carabineiros chamam à fronteira. Guardas como os do lado de cá, vestidos de igual modo, com um chapéu diferente e ridículo e modos igualmente rudes. Faziam exatamente a mesma coisa que em Portugal a falarem uma língua que, sendo distinta, se compreendia perfeitamente. Voltavam a pedir a mesma papelada. Se não fosse o tédio burocrático próprio das fardas, até podia ser um jogo. Devo dizer que, aquilo que mais me impressionava nos carabineiros, além do chapéu à Napoleão, eram as espingardas. Se do lado português os guardas traziam uma pistola à cintura dentro dum coldre, do lado espanhol traziam uma enorme espingarda ao ombro. O carabineiro de serviço inspecionava papelada. Licenças e documentos. Depois eram carimbados os papéis. Das pessoas e do carro. Demoravam eternidades a comparar os passaportes com as caras dos seus proprietários. Era nesta fase que eu inventava a vontade de fazer chichi. Apenas um higiénico subterfúgio para ir ver como era a fronteira do lado espanhol. Foi numa dessas viagens ao urinol da aduana que vi os cartazes com as caras dos bascos procurados por terrorismo. Fiquei pasmado a olhar para as pessoas naquelas fotografias. As imagens eram de pessoas fotografadas nas esquadras, horas ou minutos depois de serem presas. Os carabineiros passavam com papéis nas mãos. Um dos adultos que vinha comigo esforçou-se para me tirar dali. E eu a fazer perguntas. O espanto, o medo e a raiva nos meus cinco, seis anos. Já nessa altura era subversivo. Nos anos 70, nem os portugueses nem os espanhóis estavam habituados à democracia. Terá sido aí comecei a aprender línguas sem aprender gramática. Oralidade de fronteiras, da praia e de balcão de taberna. A primeira frase que aprendi numa língua que não o português, foi-me ensinada pelo meu avô paterno. O meu avô, que foi ferroviário e que, com frequência viajava para Espanha. Apesar de não ser assunto discutido em família, lembro-me que o meu avô, de vez em quando fazia algumas compras em Espanha, que trazia para amigos e conhecidos em Portugal. Pequeno contrabando dirão os mais legalistas. Coisas sem importância. Cigarros, caramelos, rádios de pilhas e ventoinhas. Às vezes ia com ele nas suas viagens, coisa que muito gosto me dava. A primeira coisa que aprendi a dizer em castelhano foi: -- Míralo usted. Aprendi e memorizei o Miralóstê quase como uma palavra mágica para esconjurar carabineiros. Podia ser que um homem, mesmo que tivesse apenas seis anos, impressionasse o carabineiro quando saltava do colo do avô e mostrava o saco do lanche a dizer: miralóstê. Podia ser que o carabineiro, surpreendido com a prontidão do garoto, percebendo que nada tínhamos a esconder, nem sequer se desse ao trabalho de espreitar. Que nos mandasse seguir. Que deixasse passar os caramelos que vinham arrumados debaixo das sandes de chouriço. Podia ser que por milagre da palavra dita, fosse possível seguir livre de perigos. Um simples miralóstê permitia continuar passando para sempre fronteiras e aduanas embalado pelo comboio numa viagem sem fim. Tudo para que a minha cara não aparecesse naqueles cartazes do “se busca”. Ou a cara do meu pai, que também tinha barba e cabelo comprido como os bascos. Ou a cara da minha mãe, também ela de cabelos pretos encaracolados como as mulheres fotografadas nas esquadras. Já tinha aí uns oito ou nove anos quando percebi que as fronteiras eram uma invenção dos adultos. Tipo lobo-mau ou bruxa da branca de neve, mas com homens armados e cartazes a tornar o pesadelo real. A partir dessa altura, sempre que nos aproximávamos de uma fronteira, comecei a sugerir sair da estrada e ir pelos campos. Só naquela. Sair da estrada e ir pelo mato, evitando as aduanas e os encontros nefastos dos pesadelos com a minha família nos cartazes dos procurados. Claro que nunca ninguém levou a sério a minha sugestão e continuei a passar as fronteiras com medo. Até que depois, durante a minha adolescência, a Europa ficou sem fronteiras. Ainda bem. Os cartazes dos procurados desapareceram dos meus sonhos durante uns tempos. Em adulto, fora da Europa voltei a deparar-me com os mesmos esquemas de fronteira que aprendi enquanto criança. Senti o mesmo medo absurdo da fronteira e dos cartazes dos procurados. Puta que pariu os riscos no chão, as aduanas e a documentação nacional. Acredito que vai chegar o dia em que as crianças só vão aprender o que foram as fronteiras nas aulas de história. Nessa altura, os putos de oito anos vão sorrir da ingenuidade que foi os adultos acreditarem em riscos imaginários no chão. Tal como os putos de hoje sorriem ao saber que os marinheiros de quinhentos acreditavam em sereias. Acredito num dia em que os cartazes de procurados deixarão de povoar os pesadelos das crianças, um dia em que não se façam mais buscas, mas em que todos se encontrem.

Proibido Esquecer Santiago

Mini comida de plástico, num mini prato de plástico, comidas com mini talheres de plástico e digeridas num mini assento de espuma plastificada. O som do motor abafado pelo zumbido do ar condicionado. Os pés apertados e inchados na ponta das pernas encolhidas. A grande noite atlântica. Horas intermináveis de noite. Horas e horas intermináveis de atlântico. Horas depois de sucessivos adormeceres e acordares incomodados, o amanhecer lento de quem viaja com o sol por trás. Chegou um mini pequeno-almoço de plástico e lá ao fundo, pela mini janela, o vulto do continente debaixo das nuvens. A primeira coisa que vi da América do Sul foram os cumes nevados dos Andes. E gostei. Depois foram mais umas duas ou três horas de voo sobre montanhas amareladas com pontas brancas. Os planaltos desertos de vegetação e de casas. Por fim, anunciaram que estávamos a chegar. Santiago lá estava como me tinham descrito. Catorze horas depois de Madrid. Saímos a precisar de ar e de chão na sola dos pés. Mas os deuses das viagens deram-nos mais duas horas de uma interminável fila para controlo de passaportes. Aprovada a entrada e após sucessivas tentativas, cada vez mais desesperadas, de levantar pesos chilenos nas máquinas de levantamento automático no aeroporto, através de um esquema de legalidade duvidosa, depois de apurada negociação, foi possível “levantar dinheiro” pagando uma percentagem numa loja que tinha sistema multibanco a funcionar. Saímos para a rua com um táxi pré-negociado e o papel da morada escrita. Estava sol e o ar seco. À volta do aeroporto, o habitual das construções que nascem à volta dos aeroportos. Seguimos até à cidade. Avenidas largas e arborizadas. Transportes públicos e gente jovem pelas ruas. Muitos jovens. A primeira sensação que tive do Chile, é que é um país de gente jovem. Ficámos numa coisa tipo sandes mista de pensão barata com residência de estudantes. Limpinho e no centro da cidade. Seriam umas dez da manhã quando chegámos. De banho tomado, saímos para conhecer a cidade. Comemos uma empanada cada um e decidimos ir caminhar. Errado. Não tínhamos mais descanso do que as horas que cabeceámos no avião. Caminhar ao sol não dá saúde. Sobretudo numa cidade que não se conhece e onde as distâncias relativas são numa escala gigantesca. Demorámos duas horas a ligar dois pontos que pareciam colados no mapa. Voltámos tontos e com vertigens. Acordámos ao final da tarde. Saímos refeitos para as ruas cheias de gente. Fui comprar um canivete que não pude levar no avião e me faz muita falta para mil e uma coisas que seria fastidioso dizer-vos agora, mas que fico desamparado sempre que não trago um no bolso. Andámos pelas ruas antigas entre drogarias, funileiros e lojas de ferragens. Depois, jantar. Passámos por várias esplanadas a comer e a beber. Vinho, empanadas, frango frito e pisco souer. O café, segundo a apreciação de quem gosta será fraquito. O vinho e o pisco, excelentes e baratos. Foi Santiago versão alegre. Ruas movimentadas gente jovem animada. Chegámos já tarde à pensão, mas a festa também ali seguia animada. No quintal criámos uma espécie de nações unidas versão latina. Um mexicano, um peruano, uma venezuelana, uma chilena, uma colombiana, um brasileiro, um português e uma portuguesa. Vinhos e cerveja, anedotas e canções numa guitarra que apareceu. O vinho do porto fez sucesso. A cama recebeu-nos generosa, mas o jet-leg acordou-nos por volta das seis e meia da manhã. Todos dormiam. Procurámos o pequeno almoço possível num frigorífico mais ou menos coletivo e saímos para a rua na manhã luminosa. “Queremos ir ao Museu dos Direitos Humanos e da Memória.” - dissemos ao primeiro polícia que encontrámos. Recebemos umas indicações formais e precisas e fomos. Animados pela primeira manhã de um novo continente, percorremos os dois ou três quarteirões em passo ligeiro. Chegámos cedo. Fizemos tempo num jardim florido a ver as pessoas passarem, seguindo para o trabalho e para a escola. Às nove horas entrámos no museu. Então a coisa deu-se. A brutal puta da realidade a bater-nos em cheio na cara, no peito e nas tripas. E ficou aquela angústia contagiosa, aquela raiva impotente, aquela dor e aquele vazio que nunca passam. Cinquenta Mil mortos. Estavam ali os cinquenta mil desaparecidos, torturados e assassinados pelo Pinochet de má memória. Todos à nossa espera. Alinhados para nos cumprimentarem e nos mostrarem que a terra da América é amassada com sangue e ossos. Os mortos deram-nos as suas boas-vindas e fizeram-no à sua maneira. Brancos, pretos, mestiços e índios mineiros, pastores, camponeses, jornalistas, operários, topógrafos, ferroviários, comerciantes, tipógrafos, estudantes, músicos revolucionários de barbas, adolescentes com calças à boca de sino, todos todos. Todos ali alinhados. Pode acontecer que a culpa seja apenas do museu que está bem feito. Talvez demasiado bem-feito. Ou então somos nós que somos demasiado sensíveis. Pode ser paranoia e frescura da nossa parte. Ou então foram as emoções a caírem na fraqueza das noites pouco dormidas. A história que eu conhecia dos livros, dos documentários e dos testemunhos sobre o golpe e sobre o terror do 11 de Setembro em Santiago, toda ali à minha frente. Tão real que se pode morder. Tudo numa visita de uma hora. Toda a angústia, toda a esperança destruída, todas as dores, todos os gritos, todos os prantos, toda a tortura está lá, documentada. Os sons. As imagens. As cartas das crianças para os pais já assassinados na tortura a combinarem passeios nos parques. O testemunho das estudantes violadas, dos sindicalistas queimados a maçarico, dos professores assassinados. Numa parede de três andares, milhares de fotografias com o rosto das vítimas. Gente assassinada a olhar para nós através das fotografias amareladas do passe, do casamento, da ficha policial ou do folheto para as eleições do sindicato. Os bilhetes de identidade manchados de sangue. Os textos e manifestos fotocopiados amarrotados. As máquinas fotográficas apreendidas e partidas. Os instrumentos de tortura. As roupas rasgadas. E, a mostrar-nos tudo isto os mortos, os cinquenta mil mortos, os cinquenta mil nomes. Gente como nós. Gente como tu e como eu. Saímos do museu desfeitos. Arrasados. Não falámos durante uma hora. Não conseguimos olhar um para o outro. Menos ainda para as pessoas com que nos cruzávamos. Em cada rosto de um mais velho que víamos, a incógnita do posicionamento: e tu? Terás sido carrasco ou terás sido vítima? As paredes do La Moneda não respondem, por isso pegámos nas mochilas e fugimos. Fugimos literalmente de Santiago. Uma pena. Uma cidade que me caiu tão bem. Uma terra tão bonita, aberta, jovem e luminosa... Mas não foi possível fazer de maneira diferente. Só passado mais de um mês conseguimos falar um com o outro sobre o que sentimos em Santiago. Mas um destes dias voltaremos. Voltarei a Santiago do Chile, para cumprimentar os vivos, beber pelos mortos e resgatar a parte de mim que lá ficou.

Entre Sofia e Istambul

Pelo preço de dois jantares, com sorte, persistência, paciência e pontaria, voámos entre Portugal e a Bulgária. Chegámos a Sofia ao final da tarde depois de um dia de escalas lowcost pelos aeroportos da Europa envelhecida, snobe e paranóica com os próprios medos, como o são normalmente as velhas ricas e solitárias. Sofia lá estava, cidade com nome de mulher e deusa, suja e vagamente decadente definitivamente bela e surpreendentemente culta. A Europa do Leste no seu melhor e pior. Onde os homens de negócios se confundem com mafiosos e os mafiosos se confundem com professores universitários. Historiadores chauvinistas, religiosos ortodoxos, nacionalistas saudosistas do socialismo e mulheres jovens prostituídas. Muitas. Em cada esquina uma sex shop nas outras três esquinas casinos. O melhor e o pior da pesada herança do universo socialista persiste vestindo Sofia num fato da marca branca que assenta desconfortável a uma Bulgária saudosa do nazismo. Património edificado monumental, parques e espaços verdes espalhados pela cidade convivem com avenidas esburacadas, caixotes do lixo devassados no chão e estacionamento selvagem. Muita gente jovem na rua. Teatro, ballet. Nas livrarias tudo em búlgaro. Nos cinemas a imbecilidade gringa. O pequeno comércio florescente, em cada vão de escada há uma mercearia. Alguns mendigos, menos que em Lisboa. Sofia é uma cidade suja com bancas de livros em segunda mão por toda a parte. Comida barata e lindas mulheres brancas com lindas pernas brancas dentro das mini saias curtas, olhares e sorrisos gelados e brancos nos rostos maquilhados. Mal chegámos, desistimos do hostel que tínhamos reservado. Pareceu-nos bem na net, mas no local revelou-se um buraco sem aquecimento e sem casa de banho no quarto. Claro que dissemos ao gajo que não queríamos. Procurámos outro e encontrámos uma pensão barata que transformou o dormitório em quarto duplo. Deixámos lá as mochilas enquanto os donos foram arranjar uma cama de casal. Saímos para a rua prestes a anoitecer. Demos um passeio de quilómetros atravessando a cidade que fervilhava no trânsito. Fomos à estação de comboio comprar os bilhetes para Istambul. Parques e jardins omnipresentes, mas descuidados. Grande a profusão de obras de arte a três dimensões. Escultura e arquitetura, desde a baixa idade média até aos dias de hoje, convivem no permanente verde de Sofia. Particular incidência para o realismo soviético. Algumas obras modernas e neorrealistas também aparecem. Mais ou menos escondido entre as traseiras de uma igreja e no final de uma feira de pinturas e antiguidades onde não resistimos a gastar alguns levs, encontrámos um restaurante simples. Comemos principescamente e fomos iniciados no sagrado e oculto mistério dos tintos da Bulgária. E por aqui nos ficámos, jurámos nada revelar e as memórias são nebulosas. Voltamos a pé para o hotel caminhando na noite gelada e dura de Sofia. No dia seguinte, levámos as mochilas para a estação e deambulámos pelos jardins e catedrais. Fomos ver o monumental parque escultórico de homenagem à vitoria contra o nazismo de 1945… que os nazis de hoje querem literalmente derrubar. Comemos e andámos pela cidade. Como não há bar no comboio regional que segue a linha do Expresso do Oriente, preparámos um piquenique para a viagem não nos apanhar com fome. Levámos o que fomos comprando nas mercearias da zona da estação central: uma espécie de bola de carne com salsicha, folhado de queijo feta, pão de centeio, mortadela, chá preto a ferver para dentro do termo, dois litros de água, meio litro de vodka e uma garrafa de conhaque para as eventualidades. O comboio chegou pontual com o previsto atraso de meia hora. Saímos pelas nove da noite. Despedimo-nos de Sofia com um beijo nos lábios e seguimos para oriente. Cigarros fumados furtivamente à janela com a conivência do revisor num comboio para "não fumadores". Apesar de tecnicamente, este comboio já não ser o Expresso do Oriente, de não ter nada de expresso, a linha é a mesma e a magia permanece. Atravessa as Balcãs de Zagreb a Istambul. De Sofia a Istambul, são os quinhentos quilómetros do percurso da separação dos continentes. Por fora degradado, por dentro funcional e confortável, um comboio grande e lento. O aquecimento no máximo, que nos impôs viajar de cuecas enquanto a neve caía na noite gelada. Saímos de Sofia ao final da tarde cinzenta e fria. Foram dezasseis horas no cubículo da carruagem cama, depois Istambul. Luminosa, temperada e a cheirar a mar. Pelo meio, uma paragem no meio do nada para pagar um vago visto, comprar cigarros ao preço da chuva e carimbar o passaporte. Isto entre as três e as quatro da manhã com militares armados a bater no cubículo. Os pés descalços dentro das botas grossas, as calças vestidas à pressa e um casaco grande de neve por cima do tronco nu, um gorro na cabeça, o passaporte na mão e a carteira presa nas calças entre o umbigo, o cinto e a braguilha. Chegámos duas horas depois do sol nascer. Istambul lá estava, esparramando as carnes fartas sobre as águas. A maior cidade da Europa, uma ilha de culturas misturadas, num mundo cada vez mais fechado sobre si próprio. Três margens e nenhum rio. Apenas mares. Quatro mares, dois mares a ligarem outros dois mares. Marmara e Bósforo a ligarem o Mediterrâneo e o Negro. Mais um Corno de Ouro. Três impérios sobrepostos. Romano do Oriente, Bizantino e Otomano. Nacionalismo exacerbado. Internacionalismo censurado. Curdos e iraquianos esperam a sua vez. O fundamentalismo alastra nos imensos subúrbios onde os pobres vêem passar em Mercedes de vidros fumados, um mundo que nunca será seu. O fantasma do Euro vai fazendo vítimas enquanto do Bósforo, vinte e quatro horas por dia mais de mil pescadores pescam peixinhos. Saídos da estação, despimos casacões e fomos ver o mar junto à ponte de Galata. Do outro lado, o Bairro de Galatazarai. Fica na margem Norte do Corno de Ouro. Na parte europeia de Istambul. Casas antigas, ruas estreitas e praças com sol. Procurámos um local para deixar as malas e à noite dormir. Ficámos por Sultanahmed com as suas quinhentas mil pensões baratas, hostéis e hotéis à sombra da Haya Sofia. Ficámos num primeiro andar de tetos baixos, num quarto minúsculo, mas limpo, barato e com uma casinha de banho de brincar. Na rua os, cafés onde se está a beber chá, a fumar chicha, a jogar gamão e a discutir política em todas as línguas desde há três mil anos até este preciso momento. É assim Istambul, desde o mais remoto início dos tempos e será assim até à eternidade. Mesmo debaixo da Ponte de Galata, que junta as duas margens do Bósforo, ali mesmo, junto às águas vende-se peixe. Peixinho bom. Fresco. Peixe humilde para gente humilde: carapaus, cavalas, fanecas e tainhas. São bancas de venda ambulante e cada uma está equipada com um fogareiro que permite assar logo ali o peixe que se comprou. Ao lado, outros vendedores em carrinhos vendem sandes de peixe assado que escolhemos na banca do vizinho. Há também quem vendas as bebidas. Iogurte, café e chá. Estão por ali umas mesas encostadas onde se pode abancar e comer em cima das toalhas de plástico limpas diligentemente com um pano húmido e gotas de limão. Refeições baratas, para gente do bairro, empregados de comércio, trabalhadores das obras, estudantes e ocasionais viajantes. Comemos e seguimos viagem. A incontornável Haya Sofia. Mesquita da Sagrada Sabedoria onde os gatos são os donos da cidade. Ficámos por ali até ao sol se por. Comemos, bebemos chá e fumámos nas esplanadas. No dia seguinte o mercado. O Grand Bazar, que não serve só para comprar e vender, mas também para falar com os amigos, dizer mal da vida dos outros, namorar e ver quem passa. No mercado das especiarias, abastecemos a despensa de todos os temperos. Comemos por ali, espetadas de galinha e de carneiro, com chá de maçã e frutos secos. A tarde caiu rápida trazendo um vento frio que convidava à partida. Despedimo-nos do Bósforo e voámos de regresso para Lisboa numa companhia regular que faz preços de saldos. Istambul continuará a ser uma das minhas cidades, Sofia é uma cidade que é de todos.